24 de novembro de 2009

Divagações Viajantes

Férias em Boa Sorte, década de 40

Arlette Santos
     Há dias, assistindo a uma aula, ouvi a expressão “porteiras fechadas”, no seu sentido figurado, o que de repente resgatou da memória uma fase viajante da minha adolescência.

     Ainda bem criança, morando em Petrópolis, conheci Marlene, amiga de minha irmã mais velha. Pouco depois, sua família retornou a Santos Dumont, Minas Gerais, voltando a viver na Fazenda Recanto Feliz, e nós, um pouco mais tarde viemos para o Rio de Janeiro. Naquela época não havia internet e como não tínhamos telefone o jeito era usar a correspondência postal. Minha irmã, Dith, freqüentemente escrevia à Marlene e algum comentário a meu respeito, que até hoje desconheço, fez com que essa me enviasse uma carta simples, com alguns elogios, convidando-me para passar as férias na Fazenda. Mais do que prontamente, comecei a juntar meus trocadinhos para ajudar a comprar as passagens.
     Fui passar as férias na Fazenda. E, para minha alegria, retornei várias vezes mais. Na Fazenda havia uma escolinha e Marlene era a professora. Nos períodos de férias costumava encontrar Luiz, primo de Marlene, que, assim como eu, também cursava o ginasial. As mulheres da Fazenda eram ótimas cozinheiras, tanto em doces como em salgados. Fizemos um pacto: nas férias eu e Luiz daríamos as aulas e Marlene prepararia os quitutes para o café. Era um trato que satisfazia a todos. A escola funcionava da primeira a terceira série. Dividíamos o grupo em dois e desempenhávamos nossas tarefas a contento. Ao término das aulas, antes de voltarmos para casa, pegávamos os cavalos que já estavam a nossa espera e dávamos uma boa cavalgada nos arredores da Fazenda. Quando lá estive pela primeira vez o Sr. Serafim, pai da Marlene, me ensinou a montar.
     A Recanto Feliz era um desdobramento da Fazenda São Miguel, cujo proprietário, Sr. Ariovaldo, era pai do Sr. Serafim. A cada filho que casava, o Sr Ariovaldo presenteava com um pedaço de terra logo batizado geralmente com o nome de um santo. O pessoal era todo conhecido. Cada fazenda tinha suas “porteiras”. Havia as que davam acesso às fazendas, as que separavam as propriedades, as que limitavam as áreas de pastagem e as dos currais. Uma coisa que muito me satisfez foi aprender a emparelhar o cavalo com a porteira e abri-la sem precisar desmontar.
     São lembranças, puxam bons tempos idos e sorrateiramente fazem soar ao longe aqueles versos musicais da minha adolescência: o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar.

Uma única diferença

Ruth Lifschits
     A noite chegara. O silêncio tomara conta de tudo. O apartamento dormia – Eleonora, não.  Mas todas as tarefas do dia tinham sido cumpridas à risca. Estava na hora de parar.     
     Preparou um banho quente. Precisava relaxar. Sentia os músculos tensos e doloridos. Escolheu um CD e, ao som de flautas e oboés, enfiou-se na banheira. Recostou a cabeça, fechou os olhos e entregou-se aos seus pensamentos.  Não evitou nem censurou nada. Deixou-se tomar pela música e pelos sentimentos que surgissem.  Só saiu da banheira quando a água esfriou.
     Vestiu um conjunto de dormir comprado em São Paulo quando fora visitar a filha no mês anterior. As duas tinham passado uma tarde inteira de compras e conversas em um shopping. Eleonora não gostava destes programas, mas adorava estar com a filha.  Adriana tinha o dom de fazer a mãe  rir e se descontrair. Ao ouvir que Eleonora precisava de  uma camisola para uma ocasião especial, quis saber de detalhes, já fabricando uma história romântica com personagens, encontros e um enredo completo. Nada fora feito para impedir  que as fantasias da filha tomassem corpo e o clima de mistério e romance dominasse o ambiente. Sem confirmar nada, mas deixando possibilidades no ar, tinha ouvido a filha exclamar: “Que bom, mãe!  A vida continua”.     
     Eleonora foi para a sala. Aprovou ver tudo em seus lugares e em perfeita ordem.  Olhou para os retratos que lotavam a pequena mesa ao lado do sofá: Adriana sorridente no dia da formatura; Eleonora e Fernando no dia em que se casaram; a foto da  premiação de Eleonora como funcionária do ano; ela, Fernando e Adriana no último Natal juntos. E lembrou-se da manhã em que o tinham encontrado sentado em uma poltrona, a cerveja inacabada e os jornais do domingo espalhados pelo chão - morto. Infarto agudo fulminante. “Ele não sofreu”, garantiram os médicos.  Ela e a filha preferiram acreditar nessa versão.  
     Eleonora serviu-se de um licor, acendeu um cigarro e foi para a janela olhar a noite. Pensou na filha. Certamente estava em casa, navegando na internet. Adriana trabalhava demais, não parava, dormia pouco. Horas antes tinha visto na televisão a mais recente campanha publicitária da filha. Uma beleza de trabalho. Pensou em ligar para ela, só para ouvir sua voz. Quase cedeu ao impulso, mas conseguiu se conter.
     Adriana tinha sido uma criança fácil de lidar. Seu caminho neste mundo era uma via reta, desimpedida e  espaçosa. Sabia o que queria. Vivia para o trabalho, fazendo o que gostava. Ela e o marido trabalhavam juntos, sempre envolvidos em viagens e muitos projetos. Não falavam em ter filhos. Eram felizes assim.
     Terminado o cigarro, Eleonora fechou a janela da  sala e foi até a cozinha. Escreveu um bilhete para  a empregada - dormiria até tarde e  não queria ser incomodada. Pegou um copo d’água e fechou-se em seu quarto.
     Cerrou as cortinas, ajustou o ar condicionado no máximo e ligou a televisão. Queria um programa qualquer que enchesse o quarto com vozes e música. Sentou-se na beira da cama  e  passeou os olhos pelo quarto sem se fixar em nada. Sua boca estava seca,  a respiração rápida e curta e o coração acelerado. Bebeu o copo d’água.
     Assustou-se com o toque do telefone na mesa de cabeceira. Viu no leitor de  chamadas que era a filha.  Trêmula, levou o fone ao ouvido. 
     - Mãe? Alô, alô!
     - Sim, filha.
     - Cê tava dormindo, né mãe? Desculpe, mas eu preciso te contar uma coisa.  
     E Adriana continuou falando, cheia de entusiasmo e tão rapidamente que Eleonora teve dificuldades em registrar tudo.
     Após se despedir da filha, ficou pensando nela e na conversa que tinham tido. Admirava a jovem, seu caráter, sua garra e sua alegria de viver. Ela e Fernando tinham sido bons pais e toda a dedicação tinha valido o esforço. Pena ele não estar ali com ela para conversarem sobre a filha, como gostavam tanto de fazer. Tudo na vida dos dois tinha sido planejado e trabalhado para dar certo. Ao se casarem, decidiram que só teriam um filho. Queriam cuidar da criança da melhor maneira que conseguissem, sem que para isso precisassem abrir mão de suas carreiras profissionais.   Eleonora sorriu, certa de ter sido uma boa  mãe e esquecida da trabalheira que tivera com a filha asmática. Os fins de semana sem descanso e as férias obrigatoriamente a três também já tinham perdido todo e qualquer peso.
     O  telefonema a deixara agitada. Ela precisava recuperar a calma e o controle. Foi até a cozinha e preparou um chá. Acabou fumando mais um cigarro.  Sentiu vontade de folhear os álbuns de família, como se assistisse a um filme, a uma história de vida. Quando terminou, eram quase três horas da manhã.  Não percebera o tempo passar.
     Voltou para o quarto, fechando a porta atrás de si.  Lavou o rosto, penteou os cabelos e olhou-se longamente no espelho.
     Sentada na cama, fez suas orações, benzeu-se, apagou as luzes e deitou-se.
Minutos depois, o som abafado de um tiro somou-se aos demais ruídos que enchiam o quarto, diminuindo rapidamente - solitário e despercebido.
     Afinal, não seria a notícia da gravidez de sua filha que  faria Eleonora recuar de sua decisão. Três meses antes, ela ouvira de seu médico que sua doença já estava muito avançada.   Se aceitasse se submeter a tratamentos radicais e agressivos, poderia ganhar mais  tempo. Eleonora recusara tudo. Não queria  passar por cirurgias  nem sofrer o horror das quimioterapias e  das radiações. Para ela, tudo continuaria   como sempre fora, com uma única diferença:  ela passara a saber como e quando morreria.

Carta aos Medrosos

   mgrilo
             Quem faz adaptações da literatura para o teatro está substituindo seu talento pelo ócio intelectual, e com esse papel de artista passivo evitando escolhas e conflitos  não percebe  a fascinante linguagem poética própria de cada arte maior e  a impossibilidade de transferência de uma para a outra  nesse mesmo nível poético.
                E são esses mesmos que, junto aos pseudo dramaturgos e acadêmicos dessa área, falam da morte do teatro e da dramaturgia, e ainda acreditam que marchar com os tempos é assumir fórmulas existentes – as opiniões autorizadas – sem se libertar desses parteiros e seus monstrinhos trazidos ao mundo.
                Nos debates do Teatro Casa Grande em 1973, o jornalista e dramaturgo Plínio Marcos (autor da peça perfeita “Dois Perdidos Em Uma Noite Suja”) fez a seguinte observação: “ O Teatro se finge de morto, para ver quem aparece no enterro”, e o primeiro a velar o extinto foi Aristóteles.
              Estudando os grandes textos da dramaturgia grega, cinquenta anos após a última grande peça a ser encenada, Aristósteles se tornou o primeiro critico da história do teatro (sua concepção do conceito kátharsis ainda não tem registro prático na dramaturgia mundial, apesar de ser admirável) mas ao se emplumar com regras em sua POETICA  querendo ser considerado uma fênix, por pura malícia essa  avis rara foi mesmo classificada é de defaecare lex.
              O segundo a aparecer no velório foi Hegel, em uma época em que as peças ainda eram encenadas com os atores declamando para a platéia, com total falta de ação no palco e à luz de velas, peças de seus contemporâneos Goethe e Schiller. E sem perceber que a roupa do defunto era maior , provocava sombras com a luz trêmula das velas nas cortinas do teatro assustando os espectadores  que, ao lerem suas regras da ação dramática em sua ESTÉTICA, logo desconfiaram que se tratava de uma migração da defaecare lex.
                E nesses tempos modernos, como uma carpideira dialética, aparece Brecht (“Galileo Galilei”, de sua autoria, está entre o melhor da dramaturgia), anunciando a saída do féretro no seu PEQUENO ORGANON, se empenando como um Ìcaro Proletário e agitando furiosamente os braços gritando uma paródia de si mesmo: “precisamos destituir a platéia e eleger outra!”, assombrando os cidadãos que logo verificaram se tratar de uma extraordinária reprodução em cativeiro  da defaecare lex.
               Com uma prosa clara e honesta, Guilherme Figueiredo  ensina sobre dramaturgia ("Cartilhas de Teatro VI", SNT/73) mas foi sábio o suficiente para deixar registrada essa intenção: “Esqueça as regras e escreva o que  achar melhor”, nos livrando da migração dessa avis rara, que por aqui seria conhecida como defaecare lex brasilis.
               Acho que iniciamos o ano 453 da degustação do Bispo Sardinha.

A arte da crônica I

Bia Albernaz

É perfeitamente possível atingir a profundidade ficando na superfície.
 Luís Fernando Veríssimo
Infinity of typewriters, Arman

Para os que querem escrever crônica, uma atitude é fundamental: abertura para perceber como o mundo continua a se criar. Na escrita desse estado de permanente criação do mundo faz-se a crônica. Mas como o cronista sabe também da impermanência das coisas, ele é muito humilde no relato de suas descobertas. Como um vento que quando a gente vê já passou, o texto da crônica também se contenta em, suavemente, mexer com os corações e mentes de seus leitores. Trata-se, portanto, de um gênero literário de extrema leveza, apesar de se valer das contribuições da historiografia e do jornalismo, além do trânsito entre a narração de casos e a prosa poética. Como forma literária, pode-se dizer que a crônica funda-se num modo de ver o mundo em que se conjugam ética, beleza e história. Com uma linguagem afinada pelo especial cultivo da sensibilidade em relação ao cotidiano, há nela lugar para o coloquialismo, a ruminação e o devaneio. Mas é com base no espanto que os cronistas “tomam conta do mundo”, na expressão de Clarice Lispector.

Segundo Machado de Assis, toda crônica começa por uma trivialidade, juntamente com a busca da empatia do público através de estratégias que estabeleçam fácil, rápida e familiar comunicação: “o meu primeiro cuidado é dar-lhe os bons dias”. Originalmente dispondo de pouco espaço no lugar em que mais se disseminaram, os jornais, o cronista aprendeu a ser sintético, a fazer os assuntos se integrarem e sobretudo a aproveitar a maravilhosa economia que os autores conseguem quando usam as entrelinhas. De textos que resumiam os principais assuntos na semana, nos antigos folhetins, a outros que hoje desfiam a passagem de um único episódio, na demonstração de que é possível comentar com singeleza até mesmo a falta de assunto, evoluiu o gênero.

17 de novembro de 2009

O tabuleiro

Camila Araujo
     Abriu o tabuleiro, organizou um circulo no chão, esperou sua vez, fez os cálculos, jogou as fichas, venceu a rodada e recolheu as apostas; uns apostaram moedas de cinco centavos, outros figurinhas de futebol ou bolas de gude.

    Segunda rodada; fez os mesmos cálculos, jogou as fichas e novamente foi o vencedor, terceira rodada e o mesmo ritual e o mesmo vencedor.
    Invicto, tornou-se conhecido por todo bairro, era sempre visto sorridente andando pelas ruas com o tabuleiro debaixo do braço, ninguém o vencia, era uma espécie de reizinho, ganhava de todos os garotos, até dos mais velhos e inclusive estes sempre o chamavam para cabular aula, roubar revistas pornôs na banca de jornal e o coagiam a dividir os prêmios que ganhava.
    Cansado de tanto vencer os outros meninos, decidiu arranjar adversários do outro sexo, era mais fácil ainda ganhar, já fazia seus planos no automático, tinha toda uma estratégia infalível, sentia-se uma espécie de Napoleão Bonaparte.
    Porém, um desses dias na busca por novos rivais, ele chegou na mesma praça em frente ao cinema da cidade, com o mesmo tabuleiro desgastado debaixo do braço, abriu-o, organizou um circulo no chão e aguardou até alguém criar coragem para desafia-lo, embora muitos tivessem se aproximado para ver a partida, ninguém oferecera-se:
    - ALGUÉM QUER JOGAR ? - Gritou o menino.
    Sentada com o corpo miúdo e os pés em cima do banco, respondeu de longe uma menina de vestido verde listrado e linda sardas pontuando seu rosto delicado, ela pôs os pés no chão, caminhou até o rapazinho e sentou no gramado rente a ele.
    Novamente o rapaz fez todo seu ritual e foi o vencedor, recolheu as miniaturas de monstrinhos que a garota havia apostado e saiu pela calçada esburacada com seu tabuleiro, a principio saboreou o sabor de mais uma vitória, mas em seguida começou a pensar na menininha, ela com seus expressivos olhos castanhos e sua doce voz encantadora não saiam de sua mente, como era diferente aquilo.
    No dia seguinte, lá estava ele pronto para mais uma partida, já sabia que ia vencer, era automático, vivia no automático, abriu o tabuleiro, olhou ao redor esperando ver a tal garota, nenhum sinal dela, calculou, esperou e na hora em que jogou as fichas, ela surgiu trajando uma blusa listrada e um short branco, as fichas escaparam de seus dedos.
    Silêncio, seguidos de alguns gritinhos de espanto... Perdeu.
    E até seu adversário parecia surpreso, recolhia o prêmio como quem rouba um banco e saiu de fininho.
    O nosso ex. invicto então, pôs o tabuleiro debaixo do braço e foi andando pela rua, antes de virar a esquina e entrar na casa dos avós com quem morava, lançou um ultimo olhar para a praça, ela devia estar lá, sentada com os pés no banco, ou brincando com as outras garotas.

12 de novembro de 2009

O Tigre

Ângela Brancante
Recostei e adormeci
Texto na mão
Aos poucos a realidade perdeu seus contornos
Restou a chama da vela
Entre o sono e a vigília
Fogo, fogueira
Fogueira, fogo
Luz que corre
Vem de longe
Vem chegando em  serpentinas.

Das profundezas do sonho
Surge ser estranho
Uma chama de longe vem
Em olhos flamejantes
Dentes brancos
Longos bigodes
Veloz em patas gigantes
Caminhando sonho adentro
Chegando, chegando perto 
Eis que surge
Em labaredas dançantes.

Medo, surpresa, encanto?
Fascínio
O que será isto?
Enfim surge, vem de longe
Um  tigre
De fogo e de luz
Perdido em minha memória
De contos e encantos
Infantis

A hóspede

Tathy Viana

Claudia pensou que fosse aproveitar o feriado prolongado para descansar, ver um monte de filmes no DVD e namorar seu marido, Marco Antônio. Mas seus planos foram por água abaixo quando ele anunciou que sua mãe, dona Carmela, viria passar o feriado com eles.
Hóspede que também é parente é a pior combinação possível. Só fica pior quando o parente em questão é a sogra. Dona Carmela chegou e anunciou que não iria ficar somente o feriado: a visita ia durar o mês todo. Marco Antônio comemorou como se o time dele estivesse finalmente saindo da segunda divisão. Já Claudia trincou os dentes, inspirou e expirou profundamente, mentalizou o céu azul no alto de uma montanha. Não adiantou nada. Em menos de dez dias de convivência com a sogra, Claudia já estava quase surtando, batendo com a cabeça na parede.
O problema era o espaço. Hóspede educado não ocupa espaço. Mas dona Carmela, hóspede, parente e sogra, ocupava. Hóspede educado procura se adequar as regras da casa. Dona Carmela, ao contrário, queria que sua anfitriã se adequasse às suas normas.
Claudia passava o aspirador na casa. Cinco minutos depois, como quem não quer nada, a sogra passava de novo. Aliás, ela estava sempre limpando todos os cantos e mudando tudo de lugar. Um dia, Claudia acordou às sete da manhã e dona Carmela já estava de pé, trepada num banquinho, passando um pano com álcool nas pás do ventilador de teto.
E ela queria pagar tudo, num nível que beirava o constrangimento. Da compra de mês do supermercado a conta da farmácia, lá ia a sogra puxando a carteira mais rápida do oeste. Socorro, Claudia gritava internamente. Mas tinha que gritar bem baixinho, porque Dona Carmela escutava TUDO, até pensamentos.
Toda vez que Claudia sentava no sofá para falar com uma amiga no telefone, Dona Carmela como não quer nada, vinha com uma vassourinha, para varrer ali por perto, só para ouvir melhor a conversa. Enlouquecedor.
E o marido nisso tudo? Só sabia dizer, coitada da minha mãe, ela é sozinha...
Dona Carmela alterava a rotina da casa. Ela tomava partido do filho, criticava a comida, a roupa, a casa, a própria Claudia e principalmente: não ia embora.
Vinte dias de suplício pela frente. Claudia pensou numa solução. E logo começou a colocar ideias na cabeça da sogra. Primeiro, como quem não quer nada comentou de uns conhecidos que foram viajar e quando voltaram, encontraram a casa toda revirada. Assalto.
No dia seguinte, contou que a previsão do tempo anunciou, para a cidade de dona Carmela, uma chuva de meteoros... já pensou se algum caísse no quintal?
Depois, comentou que viu na TV que está tendo uma praga de formigas-cupins na região, uma nova espécie transgênica que comia até cimento. Diz que uma pessoa chegou em casa depois de uma viagem e tudo virado pó.
A cada dia, Claudia inventava uma tragédia diferente que poderia acontecer com a casa da sogra, caso ela não voltasse logo para cuidar do que era seu. Claudia tinha esperança que se bombardeasse a sogra de informações, ela adiantaria a volta, por pura paranoia. Então falava de alagamentos, tempestades de areia, tsunamis, construção de hidrelétrica fictícia, praga de caramujos... até disse que ela corria o risco de chegar em casa e encontrar o MST lá, já que o imóvel estava quase abandonado.
A sogra escutava tudo e tadinha, caía como um patinho nas histórias estapafúrdias que a nora inventava. A paranoia começou a funcionar e ela estava seriamente preocupada com sua casinha.
Um dia, na hora do jantar, ela anunciou para o filho e a nora que ia antecipar a volta, partindo na semana seguinte. Claudia mal pôde conter a vontade de se pendurar no lustre para comemorar mas Marco Antônio, aquele bebê chorão, perguntou: mas já mamãe?
Dona Carmela respondeu que estava preocupadíssima com a casa, que estava com medo dela ser invadida pelo MST, atacada por alienígenas, comida por formigas mutantes e transportada por lesmas para outro lote. E que tinha pensado muito e resolvido voltar mais cedo para vender aquilo tudo, afinal só dava dor de cabeça e preocupação. Se livrando da casa, ficava livre de qualquer problema que acontecesse. Assim, podia voltar sossegada e ficar o tempo todo do mundo ali, com eles, sem preocupações. Afinal, na casa onde Claudia e Marco Antônio moravam não tinha problema nenhum, nem chuva de meteoros, nem acidente atômico muito menos tempestade de gafanhotos...
O único problema que tinha por ali, pensou Claudia com um suspiro, era invasão de sogra abelhuda. O tiro tinha saído pela culatra.
Mas Claudia pensou rápido e bolou nova estratégia. A sogra ainda ia ficar com ela uma semana. Sendo assim, ela deitou e rolou: começou a acordar às dez, exigindo café na cama. Aposentou a vassoura e a flanela, mas começou a passar o dedo nos móveis reclamando: Dona Carmela, a senhora esqueceu de passar o pano aqui, olha que sujeira! Na lista do supermercado, que a sogra insistia em pagar, colocou salmão, queijos caros, comida orgânica, dobrando o valor da conta e colocando a mão no bolso na hora de passar pelo caixa.
Finalmente, o tiro de misericórdia: a velha não gostava de escutar as conversas alheias no telefone? Pois bem, Claudia se refastelou no sofá, ligou para melhor amiga e começou a contar de-ta-lha-da-men-te as picardias sexuais dela com Marco Antônio, o filhinho da mamãe.
Em menos de uma semana, dona Carmela fez as malas e voltou pra sua casinha.

27 de outubro de 2009

De como um Teatro encerrou suas atividades

Mgrilo

Apesar de não acreditar que poderia ser uma boa peça, estava com minha mulher no saguão aguardando a abertura das portas.

Enquanto esperávamos, estava lhe dando instruções de como agir no final da peça se o ator fosse ruim: “Conta a História que em Roma no ano 303, o Imperador Diocleciano mandou para a arena com os leões o ator mimo Genésio, sendo desconhecida se essa decisão foi porque ele se converteu ao cristianismo ou se porque era um péssimo ator. Dessa maneira, quando assistir um ator medíocre você deve gritar assim: ‘VÁ PARA ARENA COM SÃO GENÉSIO!’ e ambas as partes irão ficar satisfeitas, ele porque vai se achar elogiado até em teatro de arena, e você porque vai se achar uma Imperatriz”, e essa conversa meia boca seguiu até as portas se abrirem.

Que noite! Era uma peça em que o elenco queria interagir com a platéia, e o que aconteceu durante o espetáculo peço que os leitores leiam o que está lavrado no livro de ocorrências pelo escrivão de uma delegacia da comarca do Rio de Janeiro:

“No dia primeiro do mês de abril do ano corrente de hum mil novecentos e oitenta e quatro, um batalhão da PM trouxe diversos elementos para esta Delegacia e se apurou que se tratavam do público e do elenco de uma peça de teatro intitulada AQUILES, AJAX E ZEUS; relatado que perto do final da peça um espectador exaltado reclamou: “Se é para a gente ter algum tipo de participação como está acontecendo, quero o meu cachê!”, paralisando o espetáculo e trazendo dos bastidores o diretor que retrucou se tratar de uma montagem stanislavskiana, ao que foi interrompido por um coro de “quero o meu!”, iniciando uma troca de insultos entre o público e o elenco; contam ainda que neste mesmo momento o gerente do teatro, que estava do lado de fora e colocava o cartaz do novo espetáculo, ao ouvir a barulheira entrou ainda segurando o cartaz sobre sua cabeça onde se lia: ”PORQUE NÃO NASCI MILIONÁRIO?”, provocando mais revolta; e que, depois de muita discussão e cálculos, concluiu-se que os espectadores pela sua participação deveriam receber determinado valor cada um na saída e postos em fila única; mais o agravante é que depois disso, dois atores ainda empolgados pelos seus papéis de marginais e dizendo que iam fazer um tal de “laboratório” resolveram assaltar o público do lado de fora do teatro para tentar recuperar o prejuízo, causando assim pancadaria generalizada”.

Ainda outro dia, passei em frente ao teatro fechado, e olhando para o alto pude ler o que sobrou das letras - que ainda não caíram - daquela malfadada peça: AQUI    JA    Z

Ao vento

    Ruth Lifschits

  “De quem é isso?”, balbuciou Heloísa, parando de repente, hipnotizada pelo que via no secador de roupas. Uma minúscula peça solitária dominava o ambiente ascético da área de serviço – uma tanga de renda vermelha.
    Se não era dela, só podia ser da empregada. A cabeça de Heloísa entrou num rodopio acelerado, com milhares de pensamentos se sucedendo, ilógicos e incoerentes: “Cida tem uma bunda enorme, é barriguda, uma eterna grávida, uma fodida que mora longe, cria três filhos sem marido, não tem grana para luxos, não tem tempo pra essas coisas, não pensa – PÁRA, PÁRA, PÁRA! Cida tem lingerie sexy, transa legal o seu corpo quarentão, e faz coisas que nem imagino”.
    A calcinha secando, embalada pelo vento que entrava pela janela, parecia uma bandeira demarcando os limites dos territórios. Um apartamento, duas mulheres, dois mundos diametralmente opostos.
    Heloísa voltou correndo para o quarto. Precisava ficar quieta. Felizmente, não trabalhava às sextas-feiras.  Enfiou-se na cama e ficou imóvel, de olhos fechados, toda contraída. Desejou poder desligar seus pensamentos e parar de sentir. Impossível. A calcinha vermelha lhe mostrara, em segundos, tudo que havia de errado em sua vida. Acontecimentos recentes afloraram: o filho que saíra de casa para estudar no exterior, a casa vazia que o casal não conseguira encher de alegria, a descoberta da traição, a separação.
   E lhe veio à mente o dia em que, por engano, saíra para o consultório com o celular do marido, Rogério. Ao verificar suas mensagens, ainda na garagem do seu prédio, identificara a voz de Sandra, sua melhor amiga. Sacanagem, sensualidade e sexo quase pornográfico a atingiram, como um direto na boca do estômago. Tonta, a respiração curta e difícil, viu-se no papel de voyeur das proezas de Rogério & Sandra durante infindáveis segundos. As intimidades obscenas da dupla, com promessas de mais e melhor pro final da tarde, queimavam-lhe mente, coração e retinas. “Sandra sabia das minhas dificuldades, me dizia pra ser paciente, que as coisas iam melhorar. Melhorar pra ela, cretina, falsa, filha da puta!”, praguejava Heloísa, dando meia volta, decidida a confrontar o marido. Jogou tudo na cara dele, junto com o celular. Rogério se assustou, mas ouviu tudo calado. Heloísa falou, falou, falou, desesperada. Depois de um longo silêncio, ele disse: “Não tenho o que te explicar. Aconteceu. Como você quer fazer?”. Naquela mesma noite, Rogério saiu para não mais voltar. Já fazia mais de um ano que os direitos tinham sido respeitados e os bens divididos. Falavam-se de vez em quando, trocando notícias sobre o filho distante.
    Depois de uma hora em posição fetal, Heloísa se levantou, tomou um banho e foi se vestir no closet, como de costume. Assustou-se ao ver sua imagem no espelho da parede ao fundo. “Que cara horrível”, murmurou, enquanto deixava a toalha cair. Baixou o olhar para seu corpo refletido, examinando-o minuciosamente. Aprovou os braços firmes, o busto pequeno, os quadris estreitos e as pernas longas e musculosas. Gostava de ser magra – “Viva minha avó, que me deu isso tudo. Pena que não me ensinou como se usa”. Heloísa não tinha vaidades. Suas roupas eram práticas, confortáveis e discretas. Funcionais. Claro que poderia usar uma tanga igual à da Cida, só que nunca tinha querido. Sem pensar, abriu sua gaveta de calcinhas e foi jogando uma por uma no chão. “Iguais, grandonas, broxantes. Por que faço isso comigo, por quê?”, pensava, de olhos presos naquelas peças sem graça. Foi então que partiu para o ataque. Pegou uma tesoura na escrivaninha e, entregando-se a uma raiva avassaladora, picotou todas as calcinhas. Cortava, retalhava, rasgava e xingava: Sandra, Rogério e, depois de um tempo, ela mesma. Vários minutos depois, tinha feito um estrago enorme, pois também atingira mortalmente outros setores de seu vestuário, mas não tudo – não estava tão desvairada assim. Queria ferir, destruir seus objetos neutros e conservadores. Não repetiria o que já tinha feito outras vezes – recolocar tudo de volta em seus lugares uma vez passada a raiva. Deu por terminada a batalha pisoteando os destroços, numa dança de guerra furiosa. Sentiu um grande alívio, muita fome e um certo cansaço. “Preciso sair daqui. É, é isso. Vou sair por aí, andar pelo calçadão, olhar gente bonita. Sem rumo certo, sem hora pra voltar. Hoje vou fazer o que me der na telha”, pensava enquanto esticava a mão para pegar uma calcinha. Mas, lembrando-se do que acabara de fazer, caiu na gargalhada. Um riso nervoso, descontrolado, que terminou num choro sentido, silencioso, doído. “Olha o que eu fui arrumar – não tenho calcinha pra sair! Eu quero sair. Sem calcinha? Sentar na cadeira do bar da esquina, o frio do metal no meu traseiro pelado, e pedir um capuccino pro Zé? Ah, não dá, não dá mesmo”, concluiu.
    Cobrindo-se com um quimono, foi procurar sua empregada, na esperança de conseguir uma calcinha limpa no armário das roupas lavadas.
    “Dona Helô, só tem essa aqui”, respondeu Cida, com a tanga de renda vermelha nas mãos.
    Heloísa, espantada e confusa, exclamou: “Mas essa é sua, mulher!”.
    “MINHAAAAAAAAAA! A senhora tá brincando. Essa não passa dos meus joelhos”, respondeu Cida, rindo, meio sem jeito. “Tava aqui, embolada no tanque quando cheguei. Pensei que fosse da senhora. Deve ter caído lá de cima. Vai ver que é da Tina, do 804. Isso é capetagem desse vento danado que joga de tudo aqui dentro. É só abrir a janela que entra coisa. E faço o que com isso?”
    “Sei lá. Joga fora, leva pra você”, respondeu Heloísa, já voltando leve e saltitante para o quarto, esforçando-se para pôr ordem em seus pensamentos. “A suíte vai ficar trancada, enfrento a bagunça mais tarde”.
    Meia hora depois, lá estava Heloísa no café da esquina, mordiscando um croissant de chocolate enquanto o segundo capuccino era preparado pelo Zé, o garçom que atendia as mesas da calçada. O jornal do dia continuava dobrado e esquecido sobre a mesa.
    Heloísa, de olhar perdido na distância, um sorriso maroto nos lábios entreabertos, acariciava sua saia de seda estampada e se deixava invadir por sensações novas e muito agradáveis - o frio do metal da cadeira não era desagradável ao contato. A sensação de frescor provocada pelo ar que lhe subia pelas pernas cruzadas, que ela balançava sem parar, era de um prazer indescritível.

LOBO

Ângela Brancante

Os que sonham de dia têm conhecimento de muitas coisas
que escapam aos que sonham de noite.
Edgar Alan Poe

Folhas ao vento
Lento tão lento
Sons ao relento
Vento dos ventos
Sonhos só sonhos
Sonhos de vento

A noite é parte do medo
O dia é parte da vida
O vento é hora sombria
Lobo branco, alma vadia




***
TYGER
animação de Guilherme Marcondes,
inspirada no poema de William Blake do mesmo nome,
foi o mote para descrever a transformação do obediente em selvagem.

Voltando à Vaca Fria ou... Por que ler “A Velha Senhora Indigna” de Bertold Brecht

Arlette Santos

O texto me agradou. No dia em que foi comentado em aula não estava muito inspirada, e pouco falei. Mas numa dessas noites, sozinha, resolvi relê-lo. Gostei da abordagem, o autor chama a velha de “velha”. E não era mesmo? Chamar um negro de “negro” para identificar uma de suas características não significa preconceito, nem chamar uma loura de “loura” revela qualquer intenção oculta de insinuar que ela seja burra.

Voltemos à vaca fria, ou seja, à velha senhora indigna: será que os filhos consentiam que ela tivesse “um lar em sua casa” ou somente “um canto para ir ficando”? E o filho, o tipógrafo, será que queria ir morar com a mãe apenas para se livrar do aluguel e viver com mais conforto? Fico a imaginar se meus filhos trocassem correspondência para decidir que destino me dariam (como se eu fosse “um troço”).

O texto mostra o preconceito para com os velhos, a falta de amor e a mesquinhez. Pelas falas e modo de expressar do neto da senhora considerada indigna, a avó continuava a mesma, apesar de fazer tantas coisas que os filhos desaprovavam: “era a mesma de sempre”. Apenas passou a levar a vida a que tinha direito e sobre a qual não devia satisfação a ninguém. Não quis acompanhar o filho ao cemitério para visitar o marido? E daí?
Também eu, há um bom tempo, só vou ao cemitério para enterrar meus mortos queridos. Quisera que todos eles optassem pela cremação. O filho tipógrafo insinuou um “affaire” entre a mãe e o sapateiro. E se fosse verdade, que mal haveria? Se só sobrou na cidade o filho fofoqueiro, melhor seria se não tivesse ficado ninguém.

Referir-se à pessoa que ela escolheu por acompanhante como “idiota” e “aborto” é o cúmulo da mesquinhez e preconceito! Imagine se meus filhos, netos, irmãos e amigos se referissem à M. – minha acompanhante – dessa maneira... E olhe que saio com ela para ir ao cinema, teatro, visitar parentes e amigos. Vamos à feira, supermercado, caminhamos... Será que tem alguém que faz comentários daquele tipo no meio em que vivo?

Realmente me diverti com a leitura desse texto. E, para completar, neste fim de semana o porteiro do prédio em que moro interfonou dizendo que o Sobral – antigo proprietário do meu apartamento – entrara em contato pedindo meu telefone para repassá-lo ao Heitor, que ficara compungido ao saber da morte do meu marido. Os três haviam sido colegas na academia de yoga do Professor Hermógenes. O porteiro, cioso de suas funções, disse que iria me pedir permissão, e então, para facilitar, o Sobral deixou seu telefone. Liguei, conversamos um pouco, e ele perguntou se eu ainda estava trabalhando. Disse-lhe que há muito estava aposentada, e então ele retrucou: “Mas a senhora saía muito...” Não, Sobral, eu ainda saio muito.