15 de agosto de 2010

A casa, as casas

          I.
          A casa lutava bravamente. A princípio ela se queixava; as piores rajadas a atacaram de todos dos lados ao mesmo tempo, com um ódio nítido e tais urros de raiva que, durante alguns momentos, eu tremi de medo. Mas ela resistiu. Quando começou a tempestade, ventos mal-humorados decidiram-se a atacar o telhado. Tentaram arrancá-lo, partir-lhe os rins, fazê-los em pedaços, aspirá-lo. Mas ele curvou o dorso e agarrou-se ao velho vigamento. Então outros ventos vieram e, arremessando-se rente ao solo, arremeteram contra as muralhas. Tudo se vergou sob o choque impetuoso; mas a casa, flexível, tendo-se curvado, resistiu à fera. Sem dúvida ela se prendia ao solo da ilha por raízes inquebrantáveis, e por isso suas finas paredes de pau-a-pique e madeira tinham uma força sobrenatural. Por mais que atacassem as janelas e as portas, pronunciassem ameaças colossais ou trombeteassem na chaminé, o ser agora humano em que eu abrigava meu corpo nada cedeu à tempestade. Senti seu cheiro descer maternalmente até o meu coração. Naquela noite ela foi realmente minha mãe.
Henri Bosco, Malicroix (In: "A poética do espaço", trad. de Antonio de Pádua Donesi)

          II.
          Minha casa é diáfana, mas não é de vidro. Teria antes a constituição do vapor. Suas paredes condensam-se e se expandem segundo o meu desejo. Por vezes, aperto-as em torno de mim, como uma armadura de isolamento... Mas, às vezes, deixo as paredes de minha casa se expandirem no espaço que lhes é próprio, que é a extensibilidade infinita.
Georges Spyridaki, Mort lucide (In: "A poética do espaço", trad. de Antonio de Pádua Donesi)
           III.
          Porque a casa que eu não tenho, eu a quero cercada de muros altos, e quero as paredes bem grossas e quero muitas paredes, e dentro da casa muitas portas com trincos e trancas; e um quarto bem escuro para esconder meus segredos e outro para esconder minha solidão.
          Pode haver uma janela alta de onde eu veja o céu e o mar, mas deve haver um canto bem sossegado em que eu possa ficar sozinho, quieto, pensando minhas coisas, um canto sossegado onde um dia eu possa morrer.
           A mocidade pode viver nessas alegres barracas de cimento, nós precisamos de sólidas fortalezas; a casa deve ser antes de tudo o asilo inviolável do cidadão triste; onde ele possa bradar, sem medo nem vergonha, o nome de sua amada: Joana, JOANA! – certo de que ninguém ouvirá; casa é o lugar de andar nu de corpo e alma, e sítio para falar sozinho.
           ... Casa deve ser a preparação para o segredo maior do túmulo.
Rubem Braga, Ai de ti, Copacabana

          IV.
          A casa estava perto; à medida que ia vendo as outras casas e chácaras próximas, Mariana sentia-se restituída de si mesma. Chegou finalmente; entrou no jardim, respirou. Era aquele o seu mundo; menos um vaso, que o jardineiro trocara de lugar.
           -    João, bota esse vaso onde estava antes, disse ela.
           Tudo estava em ordem, a sala de entrada, a de visitas, a de jantar, os seus quartos, tudo. Mariana sentou-se primeiro, em diferentes lugares, olhando bem para todas as coisas, tão quietas e ordenadas. Depois de de uma manhã inteira de perturbação e variedade, a monotonia trazia-lhe um grande bem, e nunca lhe pareceu tão deliciosa.
Machado de Assis, Capítulo dos chapéus

            V.
            Ia-me sentando eu na cadeira-de-balanço, escura – já se sabe, mas insista-se nisto, todos os móveis ali sendo confortavelmente escuros – de palhinha no assento e no encosto, era talvez de madeira avermelhada; e não me sentei. Súbito lembrara-me o que mais de uma vez ouvido, de que, lá, no mesmo lugar, quase num extremo da sala, outrora tinham sido duas, iguais, dialogavelmente emparelhadas, as cadeiras-de-balanço: a do Vovô Barão e a de Vovó Olegária, nhor e nhora. Desde tantos anos, porém, depois de que houve o que houve, uma delas desaparecera. Estaria na outra metade da casa?
           Aqui, esta sala-de-fora, mesma, por longa que se fingisse ainda de ser – e guardava, de modo estranho, uma sugestão do tamanho primitivo, de seus quinze ou dezesseis metros – fora um dia cortada ao meio. A gente corria com os olhos a parede, forrada de papel com riscas verticais alternadas, em grade sutil, estriaturas de azul e branco, vez em vez um dourado friso mais fino: mas, no lado oposto ao da cadeira-de-balanço, fechava-se, em pé, só a superfície crua, de cal, irremediável. Ali, era uma separação imposta, adventícia, o vedamento ininterrupto, a todo longo, e que partia em duas a habitação – desde o jardim fronteiro e até ao remoto fundo dos quintais.
Guimarães Rosa, Os chapéus transeuntes

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