Não se pode esquecer a contribuição de Fellini, com seu filme 8 e ½. Nele, um cineasta inicia a produção de um filme sem saber absolutamente nada do que pretende. Aliás, o filme é o banimento da palavra absoluta. E é uma obra-prima sobre o que é inspiração. A secura dessa crise (real) instaurou um momento de virada na filmografia de Fellini. A partir daí, ele encontrou uma química em que entram realidade (a equipe, o roteirista, os atores, a esposa, a amante etc.); magia ou imaginação (o enforcamento do roteirista, a experiência do harém, o vôo de um advogado com o pé preso em uma corda); e memória (os padres, a família). Acompanhar esse processo de criação é descobrir que a inspiração se reencontra com trabalho, esforço. E que há sofrimento no enfrentamento de chatices e cobranças. Ainda bem que Fellini não carrega peso desnecessário e sabe esvaziar a seriedade excessiva. Realidade, magia e memória. E pé no caminho.
No final de “8 e ½ “, o cineasta ama a vida como um bom circo. Olha-a com amor, como quem colhe tudo e se diverte com o que vê.
Pode-se então começar a escrever o que não se sabe, a confusão. Mas será preciso atravessar o deserto como o camelo de Nietzsche, afugentar os domadores como um bravo leão, para assim poder chegar a jogar de novo como criança. Caminhar tem seus momentos de sabiá e também de trevas. Olha com atenção a realidade, vê algo que não se encaixa e relembra como é maravilhoso esse algo, coisa ou lugar. Caminhar como o artista de Fellini é aceitar a sua guerra de braços abertos, e abraçar o discordante. Arte não é repetição da realidade; ela desmecaniza a realidade; realiza um trabalho sobre o que se deteriorou. É desse modo que causa estranhamento no aparentemente familiar e abre possibilidades de redescoberta do mundo. Assim, é importante que o artista se apegue tanto à negatividade – valorização das contradições – quanto à positividade – capacidade de adesão à realidade.
No filme "Fellini 8 e meio", as lembranças desfilam para o diretor em crise. |
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