25 de junho de 2014

Glória Póstuma


Flávio Franklin
              Nascemos em uma favela no entorno do Cemitério do Sambaqui na Cidade do Rio de Janeiro. Éramos dois garotos particularmente alegres e comunicativos, bons filhos e bons alunos. Porém, quando amigos nossos entraram para o tráfico de drogas, ainda adolescentes, nossas famílias resolveram se mudar antes que fossemos cooptados pelo crime. A minha foi para Nova Friburgo, onde tínhamos parentes.
              O pai dele conseguiu emprego como porteiro de edifício em Copacabana. Trabalhava na portaria enquanto a esposa fazia faxina para os moradores. O casal gostou da comodidade de morar no local de trabalho. Já o menino, acostumado a viver entre amigos, sofria de solidão. No colégio, não estava fácil fazer amizades e, no edifício, ninguém sequer olhava para o filho do porteiro.
        Felizmente, não demorou para que um professor o incentivasse a frequentar a biblioteca da escola, onde descobriu livros de mágica. Como tais livros foram parar em um colégio público, ninguém sabia explicar. Talvez algum mágico aposentado os tenha doado. O fato é que o rapaz se apaixonou pelo ilusionismo.
            Chegou a flertar com a idéia de tornar-se prestidigitador, mas o mestre dissuadiu-o dizendo que a profissão estava em extinção por impossibilidade de competir com os efeitos especiais do cinema. Disse também que estava para se iniciar no colégio um curso de contabilidade, noturno e gratuito. Como ele era bom em matemática, podia perfeitamente ser contador. Acrescentando que os contadores ganhavam bem, conseguiu convencer o pupilo a tomar esse rumo, mas ele não abandonou a mágica.
            Depois de praticar em segredo durante anos, tomou coragem e resolveu fazer uma apresentação para os colegas de trabalho. Foi um sucesso! Ninguém imaginava que o chefe da contabilidade, aquele solteirão, pudesse ser mágico. O segundo espetáculo, apesar do repertório renovado, não foi tão bem recebido. Ficou claro que não haveria uma terceira exibição.
              Desiludido, parou com tudo que se referia ao ilusionismo. Ele mesmo não sabia dizer se desistira definitivamente ou se apenas recuperava o fôlego para novo recomeço. Ficou a espera de algo que o ajudasse a se decidir e aconteceu uma tragédia.
            No entardecer de um sábado, um ônibus circular forçou passagem pelo meio de uma passeata. Era para ser uma manifestação pacífica de professores reivindicando melhores condições de trabalho, mas um grupo mascarado, para atender a seus objetivos, sejam lá quais fossem, pôs fogo no ônibus. Houve pânico, muitos passageiros se feriram e seis morreram carbonizados, dentre eles, os pais de meu amigo que voltavam de uma festa de aniversário.
            A morte dos pais fez o filho repensar a própria vida: gostava de televisão, cinema, teatro, espetáculos musicais, circo e, em particular, de mágica. Devia ter tentado ser artista e não contador. Que não fosse mágico, que fosse ator, cantor, bailarino, diretor, contrarregra, qualquer coisa, menos contador. Somente agora percebia o mal-entendido de que fora vítima. Ele gostava, e muito, do professor que lhe indicou o caminho da contabilidade e não da contabilidade em si. Essa, era forçoso admitir, detestava.
            Não suportou o fracasso na carreira de mágico amador, a morte trágica dos pais e a constatação de que abominava a profissão.
              Suicidou-se.

         Fui ao velório. A capela transbordava de gente! Ele não era um sujeito popular, nem especialmente amado, mas era um profissional respeitado e a empresa deve ter recomendado aos empregados que comparecessem. O caixão estava coberto pela capa de mágico, com a face negra a mostra e a vermelha voltada para baixo. Em cima, a cartola e a varinha. No geral, as pessoas conversavam sobre trabalho. Algumas, no entanto, estavam compungidas. Um padre surgiu e encomendou a alma do finado, sem se importar com o fato de ele não ter sido crente. Findo o ritual, como ninguém pedisse a palavra, um agente funerário e cinco jovens que se voluntariaram seguraram nas alças e levantaram o esquife com extrema facilidade. Mas não caminharam como seria esperado. Cochicharam. Os demais se interrogavam com o olhar enquanto o caixão era recolocado no lugar e aberto. Estava vazio. O corpo desaparecera. Depois de um instante de estupefação, a plateia irrompeu em aplausos e houve até quem gritasse “bravo”.
            Eu era o único dos presentes para quem o truque tinha sido previamente revelado. Saí de lá me perguntando por que o defunto, que não acreditava em vida após a morte, tomara tanto trabalho por esse momento de glória póstuma.
           O falecido foi meu amigo de infância. Estivemos apartados durante muito tempo, mas pouco antes de morrer, ele me procurou para pedir que eu comparecesse a seu velório e observasse a reação das pessoas. Para concordar com tal bizarrice, exigi que me revelasse o que tramava.
          Depois de narrar os infortúnios que o levaram a decidir se matar, ele me tranquilizou dizendo que me queria apenas como espectador do velório. O serviço, propriamente dito, tinha sido encomendado a outro amigo de infância, o Joãozinho Silva, que se transformara em chefão no tráfico de drogas. Em nome da antiga amizade, o bandido aceitou a incumbência, assim como eu estava prestes a aceitar a minha. O “Coisa Ruim”, como era chamado, não via dificuldades em desaparecer com o corpo. O cemitério ficava em seu território e seria invadido à noite. Os vigias eram conhecidos e já recebiam propina para fazer vista grossa para os movimentos do bando.
       O jazigo também já estava comprado e contratado um plano funeral personalizado especificando que o corpo passasse a noite anterior ao velório na capela do cemitério, que o caixão fosse velado fechado e coberto pela capa, cartola e varinha mágicas do falecido.
          A visita da faxineira fora marcada para hora exata em que desejava ser encontrado. Ao lado do corpo ficaria o aviso com nome e telefone do agente funerário que cuidaria de tudo.

          O mágico morreu sem saber se sairia tudo como planejado, mas desejou que alguém soubesse e esse alguém sou eu.

8 de junho de 2014

Os chinelos de meu pai

Ruth Lifschits
Um dia acordei sufocada, pesada. Uma sensação de culpa imensa tinha me tomado, sem volta e sem perdão, e me colava na cama. A ponta de um sonho tinha ficado na minha lembrança, algo raro. Meus sonhos fogem de mim quando acordo. Chego a vê-los me abandonando e o esquecimento se  instalando. Mas, naquela manhã, a culpa ficou e com ela vieram lembranças antigas, de mais de 30 anos: os chinelos de papai caídos no jardim com as solas viradas para cima! Azar maior impossível.

            E me voltaram tempos de criança, com minhas práticas sagradas do dia a dia – desvirar sapatos e chinelos  por ventura emborcados; não passar de baixo de escadas e desviar o olhar se surgisse um gato preto na frente. Tudo para não atrair a má sorte. Não adiantou. Numa tarde de domingo, janela do banheiro aberta, quis ver a rua e esbarrei nos chinelos de meu pai sobre o batente da janela. Eles foram bater lá em baixo com as solas para cima. Voei escada abaixo, mas as  portas trancadas me travaram. Todos os alarmes de perigo zoavam na minha cabeça. Faça algo, rápido, o azar está chegando. Mas meus pais estavam dormindo, e as chaves com eles. As janelas abertas e as belas grades de ferro batido trançado impediam entradas ou saídas de emergência. “Daqui a pouco eu desviro os chinelos”, pensei, mas acabei me esquecendo de fazê-lo. A tarde se foi entre sucessivas brincadeiras com meus irmãos e a menina da casa ao lado. Veio a segunda-feira com a ida à escola, deveres de casa, mais brincadeiras e, no dia seguinte, às 10 e 30 da manhã papai morre em um acidente aéreo. Eu não desvirei os chinelos a tempo! Esse pensamento invadiu logo a minha cabeça assim que soube do desastre.
            Reagi à culpa e à notícia da morte de meu pai criando algo que nos salvasse, a mim e a ele: amnésia. Meu enredo interior: papai não tinha morrido no acidente, estava perdido sem saber quem era e sem saber de nós. Um dia voltaria para casa. Era só esperar. E como esperei, quieta e calada, porque nunca contei sobre os chinelos para ninguém. Deixamos São Paulo de volta ao Rio. Fomos para a Tijuca, casa de minha avó materna e de lá para a Urca. Eu tinha 6 anos quando ele morreu e até os 12 anos alimentei esperanças de que ele iria voltar. Quando a campainha de nosso apartamento tocava eu achava que era ele, finalmente. Até que um dia precisei de um documento para levar para o colégio. Mamãe não estava em casa e eu resolvi pegar a certidão numa pasta que ela guardava no guarda-roupas. A busca me colocou frente a frente com a certidão de óbito de papai. Comecei a ler e não terminei. A descrição do que foi encontrado, como foi identificado, acabou com minhas esperanças. Ele estava morto mesmo, sem volta. Os chinelos virados, o azar, meu feito. Fiquei desesperada, chorei muito naquela tarde. Mamãe chegou e estranhou me ver deitada na cama, de cara para a parede. Inventei dores de cabeça, cólicas, algo assim e logo me ignoraram. Mas eu não era mais a mesma, uma tristeza enorme passou a me habitar. Minha família percebeu a mudança mas acabaram achando que eram efeitos de já ser mocinha, da adolescência. Mas eu sabia. Passei a tomar o maior cuidado com tudo que fazia. Não queria provocar o azar, dar chances para ele atacar. E fui me tornando obediente ao extremo, incapaz de colar ou matar aulas, procurando acertar em tudo pois se algo acontecesse eu poderia dividir a responsabilidade com os adultos que me mandavam fazer isso ou aquilo, proceder dessa ou daquela maneira. Vejo meus irmãos conversarem sobre “artes” que fizeram na adolescência e eu nada tenho para contar. Não transgredi, nem fila de cinema eu furei.

            Um dia fui absolvida. Foi assim: estava em Búzios, picando cebolas para o molho do churrasco. Marido, filhos e amigos no pátio, cervejando e conversando, de olho na carne sendo assada e eu, na cozinha,   preparando os acompanhamentos: farofa, molho à campanha, arroz e salada. Sem perceber, comecei a falar comigo, o que adoro fazer quando fico sozinha. Conversa vai, conversa vem, quando vi estava conversando com meu pai. Ele estava encostado na pia, de braços cruzados,  me olhando picar cebola. Eu falava de meus filhos, de umas cismas do meu marido e, de repente, ele me disse “Filha, esquece os chinelos emborcados. O avião  ficou sem controle. Foi um acidente”.  
            A cena está viva em minha mente. Consigo ver os detalhes da roupa que ele usava: camisa branca de abotoar na frente, mangas curtas, calça caqui de pregas na cintura e bainha inglesa; sapatos marrons, de amarrar e meias brancas. Ele estava me olhando com ternura. E assim ficou por um tempo – calado e me olhando. A imagem foi se desfazendo, lentamente.  Eu com a faca no ar, boca aberta, olhos arregalados, enquanto um entendimento quente me invadia e acalentava. 
Brejal, 22 de março de 2014

Ao pé da escada

Daniel Willmer

Talvez escutar Philip Glass gere um texto, uma tristeza, um assombro. A musica não é melancólica, mas algo nostálgica, lenta, em terças menores, repetitiva quase.
 
          Folheando um álbum, vejo uma vida em lacunas. Vejo imagens que sempre soube, que me acompanharam por toda a vida, revisitadas de tempos em tempos, sem contudo ter qualquer lembrança associada a elas. O olhar se volta para onde não existe memória, apenas reconhecimento. O tempo vai adiante e volta, deformado, ao sabor da arrumação, do caber nas páginas, das imagens espalhadas, no ir e vir de um arquivo de retalhos.
          Olhando, me pergunto até quando vai a infância e prontamente respondo: até os doze em 10 de janeiro. Data-marco. Nesse dia, a casa e o tempo desabaram. Me espanto, me dou conta de que nunca tive sete anos, ou cinco, ou mesmo dez. Não existe prova, imagem nenhuma destas idades. Memória portanto é invenção. O que sentiu, viveu ou pensou aquela criança aos onze anos? Nessa infância lacônica, defeituosa, também não existe cidade, rua, apenas a casa, ou melhor, quase sempre  o jardim da casa.
          Me detenho numa foto em que me vejo junto aos cães da casa. Estou no centro, sentado numa curta escadaria que parece se fechar aos poucos pela perspectiva. Duas jardineiras com samambaias e sem flores, uma de cada lado, acompanham os degraus. Adivinho que seja inverno, pois estou de calças e não há flores. Em todas as casas onde vivi sempre tinha muitas flores. Gosto de flores. Estou sentado ao pé da escada com Alexandre, o dálmata. Repouso uma das mãos em seu dorso pintado. Talvez o afague. A outra mão parece quieta sobre o degrau. Meus joelhos estão juntos enquanto os pés, afastados para os lados, são escudos contra o mundo. Estou de sapatos. (Sempre usava sapatos fechados. Ou então ficava descalço.) São os sapatos marrons. Uso-os sem meias. Com eles, chutava pedras, jogava futebol de chapinha ou de bola de papel no colégio. Tirava apenas para tomar banho ou quando ia para a cama. Os bicos estão marcados, lanhados.
       Visto calça e camiseta azuis. Uma das minhas combinações favoritas. Roupas que eu exauria, antes de, muito infeliz, jogá-las fora.  Quando o fazia era porque os remendos eram mais abundantes do que o tecido, e os furos impossíveis de serem cerzidos.  Noto que a gola da camiseta está frouxa. Por anos destruí golas. Da roupa herdada de meus irmãos maiores, não gostava: eram velhas, eram deles. Gostava daquelas que sempre haviam sido minhas.  No entanto, destruía suas golas com raiva animal. Elas eram as rédeas do cavalo em que me transformava. Rédeas que eu mesmo me impunha para me refrear. Trincava os dentes, respirava forte. Com intensidade crescente, num acesso curto, desabava pelo chão com um riso louco, a camiseta toda deformada e babada (cavalo não cospe), enchia o peito de ar e batucava o chão com mãos e pés. Rosnava como os cães e gatos para parecer bravio, um cavalo louco. (Não sabia que cavalos não rosnam, resfolegam – não conhecia a diferença, fraco de vocabulário.) Foram vários anos e muitas camisetas. Mais tarde, depois de me tornar ladrão de cigarros e fumar escondido,  passei a usar camisas e a raiva seria extravasada por bombas.
          Na foto, olho para a lente da câmera com desconfiança, de soslaio, sutilmente infeliz, a cabeça de lado e o queixo para baixo. Não tinha o costume de ser fotografado, desgostava. Noto as olheiras e o semblante algo triste. Nessa época não tinha amigos, apenas companheiros de classe. E não me encaixava com a minha família. Eu, a minha turma; eu, a família, tínhamos caminhos diversos. Eu era do jardim.
          Lentamente, subo os seis degraus da escada. Vejo que há um outro cão, grená, escondido na sombra, e na varanda mais acima, muito alta e coberta, duas cadeiras de ratam, de onde se podia desfrutar da vista do centro do Rio e do jardim cuidado por meus pais e o jardineiro. Lá dentro, fica um aposento inacessível: a sala de música de meu pai. Majestosa, suntuosa, com seus seis metros de altura e os oito de lado, as enormes portas, cortinas pesadas fabricadas por minha mãe, sofás proporcionais, e as caixas de som: monstros de mais de metro de altura e quase dois de largura onde cabiam 102 autofalantes. O seu orgulho. Desenvolvidas por um amigo engenheiro, povoavam as noites com vozes e orquestras, vindas de elepês estereofônicos ou não. Acima, em meu quarto, tudo vibrava pelos tímpanos, os tutti, os dós de peito, enquanto que, sob o travesseiro, por um radinho de pilha, a rádio Nacional me embalava o sono.
          O pensamento aderna por outros cantos, outras lembranças, ao sabor do solo de piano. Olho de relance outra imagem da família, e a memória me leva a uma prima que por aqueles tempos conheci, mas que não encontro na foto. E a garota bela e simples de quem não sei sequer refazer o rosto me sussurra: estórias descansam no invisível.
5 de junho de 2014

2 de junho de 2014

Duas classificações de Ezra Pound em "ABC da literatura"

Em relação aos escritores:
1. Inventores
Os que descobriram um novo processo, ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo;

2. Mestres
Os que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores;

3. Diluidores
Os que vieram depois das primeiras duas espécies de escritor e não foram capazes de realizar tão bem o trabalho;

4. Bons escritores sem qualidades salientes, ou seja, a classe da imensa maioria do que se escreve (dignamente)
Os que fazem mais ou menos boa obra em mais ou menos bom estilo do período;

5. Belles Lettres 
Os que realmente não inventaram nada, mas se especializaram em uma parte particular da arte de escrever;

6. Lançadores de “modas”
Aqueles cuja onda se mantém por alguns séculos ou algumas décadas e de repente entra em recesso, deixando as coisas como estavam.

Obs.: De acordo com Ezra Pound, as duas primeiras categorias são as mais bem definidas, e a familiaridade com elas possibilita avaliar quase que qualquer livro em um primeiro contato.

***
Em relação às modalidades de poesia:
1. Melopeia
aquela em que as palavras são impregnadas de uma propriedade musical (som, ritmo) que orienta seu significado (Homero, Arnaut Daniel* e os provençais)

*
"Aura amara / branqueia os bosques, car- / come a cor / da espessa folhagem." (Transcriação de Augusto de Campos);

2. Fanopeia
um lance de imagens sobre a imaginação visual (Rihaku, isto é, Li-T’ai Po* e os chineses atingiram o máximo de Fanopeia, devido talvez à natureza do ideograma)

* "Perguntais por que moro na verde montanha. / Intimamente sorrio, mas não posso responder. / As flores de pessegueiro são levadas pela água do rio... / Há outro céu e outra terra, para além do mundo dos homens.";

3. Logopeia
“a dança do intelecto entre as palavras”, que trabalha no domínio específico das manifestações verbais e não pode conter em música ou em plástica (Propércio, Laforgue*).

* "Por avenidas / E alamedas / Fugia ela iluminada / E eu com olhos a seguia / E a re-conhecia / Como Um sonho / Abortado."
Para baixar o livro, clique aqui.

Ideias e "story line"

Quadro de ideias proposto por Lewis Herman, recomendado por Doc Comparato em Roteiro - arte e técnica de escrever para cinema televisão
IDEIA
Selecionada*
Surge da memória ou vivência pessoal; sonho acordado ou devaneio; vem do universo pessoal, surge “de dentro”, dos pensamentos, do passado recente ou remoto
Verbalizada
Surge a partir do que alguém nos conta (um caso, comentário, pedaço de estória); nasce do que ouvimos
Lida
Surge “de graça”, durante a leitura de um texto qualquer (jornal, revista, livro, panfleto...)
Transformada (“Twist”) – Autor amador copia; o profissional rouba... e transforma.
Nasce de uma ficção, de um filme, de um livro, de uma peça de teatro
Solicitada
Sob encomenda; circunstancial
Pesquisada*
Nasce de uma pesquisa; uma sondagem; uma intenção; corresponde a uma lacuna temática, de natureza dramática ou mercadológica
* Não são bons nomes...

- Guimarães Rosa é um bom exemplo de autor que tira a maioria das suas ideias do que ouve.
- Shakespeare escreveu Hamlet depois de ver uma peça da qual roubou a ideia.
- Há autores que se especializam num filão, como a adolescência, por exemplo; eles têm ideias pesquisadas.
***
          Ainda segundo Doc Comparato:
     a “story line” resume a trama de uma estória em 5 linhas, no máximo. Apresenta o conflito, seu desenvolvimento e solução. Ou: Algum acontecimento e, a partir dele, uma necessidade e uma realização.
      NÃO se resume a uma declaração, nem a uma questão ou a uma mensagem moral.
      Um exemplo:
     Graham Greene conta uma ideia: “Fui a um enterro de um amigo. Três dias depois, ele estava andando pelas ruas de Nova York.”

    O que resultou na seguinte "story line”:
   Jack vai ao enterro de seu amigo em Viena. Inconformado com a perda, indaga e acaba descobrindo que o amigo não morreu. Ele está vivo e falseara o seu enterro por estar sendo procurado pela polícia. Exposto pela curiosidade de Jack, o amigo acaba morrendo baleado pela polícia. (E a partir daí, foi realizado o filme O terceiro homem.)­­­

    Outro exemplo, vindo de seus alunos:

   Ideia: "Uma mulher enlouquece e passa a puxar o ferro de passar roupa como se fosse um cachorrinho".

   “Story line”: Num país ocupado por invasores nazistas, uma mulher que carrega um ferro consigo e faz mil estripulias é apontada como a louca folclórica da cidade. Na verdade, ela é elemento de ligação entre diferentes focos da resistência armada, e leva, dentro do ferro, mensagens fundamentais para a organização do movimento. A polícia nunca pensa em revistá-la. Após a vitória final da guerrilha, a louca do ferro vira heroína nacional.

Anotações em torno do jogo e à margem das "Primeiras estórias", de Guimarães Rosa

Jogos, ritos e mitos
       Numerosas e bem documentadas pesquisas mostram que a origem da maior parte dos jogos que conhecemos encontra-se em antigas cerimônias sagradas, em danças, lutas rituais e práticas divinatórias. Assim, no jogo de bola, podemos perceber os vestígios da representação ritual de um mito em que os deuses lutavam pela posse do sol; a dança de roda era um antigo rito matrimonial; o pião e o tabuleiro de xadrez eram instrumentos divinatórios.
Pintura Olmeca ("povo borracha") mostra o jogo de bola como experiência sagrada.
        A potência do ato sagrado reside precisamente na conjunção do mito, que enuncia a história, e do rito, que a reproduz. Se a este esquema nós comparamos o do jogo, a diferença mostra-se essencial: no jogo, apenas o rito sobrevive, e não se conserva mais que a forma do drama sagrado, na qual todas as coisas voltam sempre ao início. Mas foi esquecido ou abolido o mito, a fabulação em palavras ricas de significado que confere o seu sentido e a sua eficácia.
        Ao contrário do ludus, mas de maneira simétrica, o jocus consiste em um puro mito, ao qual não corresponde nenhum rito que lhe dê aderência à realidade.
       [Brinquedo] é aquilo que pertenceu – uma vez, agora não mais – à esfera do sagrado ou à esfera prático-econômica.
Giorgio Agamben em O país do brinquedo – reflexões sobre a história e sobre o jogo
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Do jogo à festa
          Por que será que existe no universo uma criatura que gosta tanto de Festa, que adora jogar e divertir-se? – É a pergunta que mobiliza e encanta todo desafio histórico! E a resposta nos traz as Musas de Mnemosine: porque jogo é diversão e ambos fazem a Festa. Divertir-se é separar-se do que se deve ser, toda diversão troca a necessidade pela liberdade. E jogar é evadir-se de um mundo de regras e deveres, é encaminhar-se para o mundo do inesperado e da surpresa na criação da inventividade. De que o homem se diverte na Festa? – Ele se diverte das prescrições e restrições. Com que o homem se diverte na Festa? – Ele se diverte com a liberdade. É a Festa da Memória que nos faz esquecer as injunções e nos joga na diversão da liberdade e nas peripécias da criação.
        Como esquecimento positivo a Festa perde o caráter frívolo e passivo e converte para o mais elevado patamar de ação e atividade: a invenção de ser, a inventividade de se criar a si mesmo. O mais ativo que o homem pode ser não é, portanto, no trabalho, quando produz alguma coisa e sim no empenho com que se dedica a traçar o perfil de sua fisionomia. Os demais seres vivos vivem a sua vida e nada mais. Só o homem vive com o Nada, i. é, sobrevive à vida em sua vida. O homem é assim o único ser vivo que, para viver, como homem, não lhe basta viver, tem de empenhar-se todo em criar a vida. É convidado constantemente a assumir a responsabilidade de cuidar da vida, de dedicar-se a viver.
Emanuel Carneiro Leão, em Pensamento, Festa da Memória
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É a festa. Gritos e canções, as vozes, o estampido alto e transmitido dos foguetes. Pelo seu magnetismo elementar, a festa atrai o homem solitário, o que repousava na casa, um homem grande, com duas mãos maciças, a cabeça amarela debaixo do sol. Anda como um urso. Então pára e põe-se a ouvir o barulho da festa. Esteve muito tempo a dormir, a comer e a pensar. Regressa agora ao mundo veemente e luminoso das pessoas com os seus gestos e palavras largas, a sua paixão de pessoas. Ele vem à festa. A festa não é uma coisa menor. Bem: é uma fábula, uma ficção verdadeira. Porque os homens semearam os campos e cuidaram dos animais. Com sol, neve e chuva, num circuito inexorável. Sempre. Dormiram, acordaram, esgotaram-se. Vivem na escuridão, no vácuo. Têm mãos. Respiram sombriamente sobre as mãos. Depois param. Então criam a festa. As forças irrompem do fundo; fazem vacilar o fino e precário equilíbrio da terra. Para lá da lei abolida, às coisas tornam-se visíveis, com uma intensidade, uma transparência anterior: sinais, vozes, tudo. Como se o mundo inteiro cavasse uma ressaca no corpo de cada um, e essa límpida desordem deixasse o coração escorrido. É a festa dos homens.
Herberto Helder em Os passos em volta
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Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.
Jogos às margens As primeiras estórias de Guimarães Rosa
         Os protagonistas de Primeiras estórias farejam esses acontecimentos, adivinham esses milagres. São todos, em grau menor ou maior, videntes: entregues a uma ideia fixa, obnubilados por uma paixão, intocados pela civilização, guiados pelo instinto, inadaptados ou ainda não integrados na sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem. Neles a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia.
Paulo Ronai em Os vastos espaços

               As estórias são “primeiras” porque são originais em dois sentidos: por conterem sua origem  em si mesmas, o que significa que elas não cessam de criar sentido, e por não se parecerem com nenhuma outra, o que equivale a dizer que elas inventam um mundo e o homem que o habita.
Maria Lúcia Guimarães de Faria, em Aporia e alegria

             Não gosto de falar em infância. Um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Já era míope, e nem mesmo eu, ninguém sabia disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas. 
Guimarães Rosa em Perfil do autor, por Renard Perez
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            “As margens das alegria” abre-se com a frase categórica: ESTA É A ESTÓRIA. Por que se diz que esta é a estória, e qual é o significado das margens da alegria?
         A estória se articula na ritmanálise de dois movimentos antagônicos, que configuram a dialética do elemento aéreo: o entusiasmo do voo que eleva o Menino ao ápice da experiência vital e a angústia da queda que o degrada ao vórtice da vivência mortal.
         A alegria demasiado humana é frágil, constantemente ameaçada e interrompida, como um riacho sem fonte própria, sempre sujeito a secar-se, uma vez que não promana de si mesmo, de um núcleo propulsor interno, mas depende de circunstâncias alheias a seu curso.
        A estória total do Menino, em seus dois segmentos complementares, é regida pela liminaridade, que preside à gênese, ao desenvolvimento e à consumação de sua travessia existencial.
            O limiar é o cenário poético da dança dos contrários, que dramatiza o existir.
Maria Lucia Guimarães de Faria em Aporia e alegria
por Nelson Cruz
No conto “As margens da alegria”, a figura principal é um garoto, chamado apenas de menino, lembrando a universalidade e anonimato do ser humano frente à imensidão do universo. A sua trajetória se inicia com uma viagem: [...] a viagem corresponde a um círculo, obedecendo a um movimento que se identifica com a própria progressão da existência humana. O Menino é a personagem central que experimenta as seguintes etapas: saída para o mundo, conhecimento do mesmo e volta para o lugar de origem, após uma significativa experiência de vida.
Vânia Resende em O menino na literatura brasileira

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Exercício para se aventurar pela ficção
 Jogar com a gente mesmo, sendo um outro
1. Depois de ler o conto "As margens da alegria", de Guimarães Rosa, escolha uma foto sua da infância. De preferência uma foto da qual você não tenha recordações do momento em que foi tirada. Olhe para você. Olhe bem para a fotografia e a descreva. Tome por base o texto de Cristóvão Tezza, "O duplo". Para baixa-lo, clique aqui.
2. Descreva uma viagem feita durante a sua infância, na 3a. pessoa do singular.
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Duas boas referências de críticos para uma leitura criativa
de "Primeiras estórias", de Guimarães Rosa
"A originalidade das Primeiras Estórias e a estrutura arquitetônica do livro", de Maria Lucia Guimarães de Faria. Para baixar, clique aqui
"Os vastos espaços", por Paulo Rónai. Para ler o texto, clique aqui.
Cena de teatro de sombras em "As Margens de Alegria", por Alexandre Fávero