19 de agosto de 2010

Salve Jorge

Alex Cerqueira
        Eu andarei vestido e armado
com as roupas e as armas de São Jorge
para que meus inimigos,
tendo pés não me alcancem,
tendo mãos não me peguem,
         tendo olhos não me vejam,
         e nem em pensamentos eles
possam me fazer mal.
Armas de fogo
o meu corpo não alcançarão,
facas e lanças se quebrem
sem o meu corpo tocar,
cordas e correntes se arrebentem
sem o meu corpo amarrar. (...)
(fragmento oração São Jorge - fonte: www.clipinfo.com.br/clubimp/sjorge.htm)        

            Na frente da camiseta vinha São Jorge, muito bem impresso. O cavalo, de uma brancura irretocável e finas rédeas prateadas; a capa esvoaçante; lança dourada, como o elmo do cavaleiro, que se fundia a auréola de santidade; o dragão verde-escuro, com a lança enfiada até a goela, se retorcia, angustiado pelo golpe fatal. Na parte de trás da camiseta, mais que vermelha, nova, de malha boa, em letras brancas e bem legíveis, bastava ser alfabetizado para rezar. Joãozinho Guerreiro não disfarçava a vaidade ao envergar o traje, como um soldado orgulhoso da sua farda.
           João Otávio Rodrigues Guerreiro Estevão levantou-se às quatro da manhã, fiel, como sempre, ao valoroso mártir. Neste dia de adoração, prestação de homenagens, pagamentos de promessas e outros assuntos relacionados à devoção, não parou um minuto sequer: prendeu bandeirinhas vermelhas e brancas em frente à igreja, confessou, assistiu missa, comungou, acendeu vela, auxiliou na cavalgada, soltou foguetes, bebeu cerveja, carregou criança doente no colo, soltou foguetes, bebeu cerveja, ajudou idoso a subir escada, soltou foguetes, bebeu cerveja, comprou medalhinhas e fitinhas do santo, soltou foguetes, bebeu cerveja...
          “Tanta coisa, meu santo, e ainda são nove horas da manhã!”
            Exausto, só conseguiu chegar ao seu bar predileto às dez e meia. Sentou-se, confortado com a possibilidade de, finalmente, descansar um pouco a cabeça e o corpo. Tentava declamar a oração ao santo, estampada no verso da camiseta. Não estava obtendo sucesso, culpa da mistura ingrata de álcool, calor e sono, pois ninguém discutia a camaradagem existente entre o santo e o bebum, já provada num sem número de vezes, em histórias variadas e contadas não só naquele bar, mas em toda a redondeza.
           As repetidas tentativas de relembrança eram interrompidas, frequentemente, por Paulo Estudioso, sempre afirmando que em cinco minutos de acesso ao Google, encontrara quase uma dezena de diferentes versões de orações a São Jorge, mas, esta que Joãozinho propagandeava, era a mais fajuta de todas. Inclusive glorioso mártir e valoroso padroeiro, expressões obrigatórias nas melhores fontes, não apareciam na estampa da camiseta, o que considerava, inclusive, desrespeito à santidade. 
            Joãozinho Guerreiro, que não era lá-nem-cá muito amigo de Paulo Estudioso, que, diga-se de passagem, há três meses não emplacava cinco minutos de conversa sem citar o Google, fato que já incomodava os freqüentadores do boteco, sugeriu que ele procurasse uma esposa nova no Google, já que a sua mulher havia se pirulitado com um vizinho, porque ele não fazia nada mais que viver navegando na internet.
            Paulo Estudioso tentou agredir Joãozinho, mas foi contido por Zé Maria e Mineiro Coruja, que se adiantaram energicamente, pondo-se entre os dois e evitando a pancadaria. Joãozinho bradou:
           – Tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamento possam me fazer o mal!
          Surtiu efeito. A audiência achou porreta a intimidade de Joãozinho com o santo. Quase aplaudiram. Paulo entendeu o vento contra e arranjou desculpa pra se retirar, alguma coisa como pesquisar desde que época jogavam lixo no morro que desabou em Niterói.
          Zé Maria, outro que não era fã de carteirinha de Paulinho Estudioso, desde que o internauta descobriu no Orkut que a filha de Zé Maria pertencia a umas comunidades pouco recomendáveis para moças de família, segundo palavras do próprio descobridor, propôs uma disputa:
          – Vamos ver quem é que consegue decorar primeiro a oração, completinha, de São Jorge? Mas é a oração que está aí na camiseta de Joãozinho, sem essas internetices de computador que o fofoqueiro do Paulo vive dizendo. Cada um lê um pouco a camiseta, depois vira de costas e recita a oração. Fica valendo, pra quem acertar tudo, duas cervejas de cada perdedor. Topam?
          – Mas, e eu? Como eu vou ler a oração, se ela está na minha camiseta? Ainda por cima atrás? Nessa eu fico no prejuízo. Só se eu ficar de juiz, em pé, com a camiseta esticada e conferindo os erros... Mas, como? Tirar a camiseta, eu não tiro, nem amarrado, que é promessa pra meu São Jorge, que no dia dele eu não tiro esse manto sagrado de jeito nenhum! Sendo assim, não vou conseguir ler! 
          Mineiro Coruja, que ficava geralmente caladinho, mas muito atento – inclusive não se sabia mais se o rapaz era chamado de mineiro pelo seu estado natal ou pelo seu jeito – trouxe a solução:
          – Vou tomar emprestado um espelho na barbearia de Seu Zé Tesourinha. A gente põe o espelho de jeito que Joãozinho confira o escrito na própria camiseta, sendo ele amigo do santo, proprietário da camiseta, modelo e juiz de uma só vez.
         – E, se eu for o juiz, tenho direito a uma parte do prêmio? Claro, com parte no prêmio!  Joãozinho mesmo perguntou e respondeu.
         Enquanto Mineiro foi buscar o espelho, chegaram à conclusão que ninguém é de ferro para esperar de bico seco e desceram mais oito cervejas. Não que o Coruja fosse vagaroso, mas o calor insistia em permanecer na cidade, mesmo já caminhando para o final de abril.
         Chegado o espelho, posto em local apropriado, organizadas as apostas e apostadores, Joãozinho encontrou dificuldades de capacitar-se para a arbitragem: somaram-se ao seu estado etílico, o cansaço da manhã de tarefas hercúleas, a emoção pelo dia de seu santo protetor e, principalmente, a falta de costume de ler as letrinhas espelhadamente. Além disso, havia o desconforto de precisar torcer o pescoço, revezadamente, para a esquerda e para a direita, em inúmeras tentativas de razoável leitura.
        O calor aumentara, o corpo não ajudava, a cabeça pesava, o pescoço doía, pensava em desistir. Desistir não poderia, não só porque o juiz teria direito a parte do prêmio, mas, principalmente, não podia fazer uma falseta dessas com o seu santo protetor e atirar fora a sua fama de apadrinhado por São Jorge, expondo-se à vergonha, desonra e, quem sabe, até algum castigo do além..
        Neste momento veio a prova: quem tem padrinho não morre pagão. O santo, num rápido galope, de jeito que mal dava pra ver a capa esvoaçante, partiu da estampa frontal, fincou a parte de trás da camisa com a ponta da lança dourada, içando-a e exibindo-a, tal e qual a um outdoor frente os olhos de Joãozinho, que não precisou mais virar-se ou olhar para o espelho, sem a necessidade de qualquer artifício. Lendo clara e confortavelmente a oração, apenas corrigia os erros dos apostadores e sorvia seus copos de cervejas, merecidos pela arbitragem, com tamanha segurança que parecia que ele, Joãozinho Guerreiro, devoto de São Jorge, havia sido o autor da oração estampada na camiseta vermelha.

Um comentário:

  1. Engenhosa imaginação! O Texto remete-nos aos "bares suburbanos Tropicais", movidos a cerveja, claro! com bastante sensibilidade poética. A Escrita é leve, passando simplicidade como o próprio universo dos personagens, o que torna a leitura fácil e estimulante.

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