Ruth
Lifschits
Noite fria, muito escura. Nós três, os maiores, grudados, bem juntinhos,
sentados no primeiro degrau da escada. O menor passava pra lá e pra cá no colo
da babá apressada, arrumando coisas, pegando roupas nossas no quarto dos fundos,
no andar de cima, pela casa. Não sei bem o que ela fazia, mas estava muito
ocupada. Nossa casa cheia e continuando a se encher de pessoas solenes, sérias.
Umas conhecidas e muitas outras não. Onde estava minha mãe? Continuava sumida.
Tínhamos voltado do colégio e ela não tinha aparecido para nos receber. Eu
ouvia seu choro, mas quando a procurava
só via as costas de mulheres encurvadas olhando para algum ponto no meio
daquele embolado de gente – de lá vinham os sons de choro, gritos, gemidos. A
voz era dela, mas muito diferente do que costumava ouvir. Não sei quanto tempo
se passou, ficou escuro e deixamos nossa casa. Não me disseram por quê. Nada
Fomos levados para a base militar e pensei que papai estivesse lá.
Procurei por ele, esperei por ele mas ele não apareceu. Entramos num avião
depois de passarmos por homens fardados que nada diziam, só nos olhavam com
olhar esquisito, triste. Ninguém dizia nada. Estava com medo. As fardas eram
como as do papai. Onde estava ele? Também tinha sumido. Um amigo dele me pegou
no colo, me beijou e abraçou. As bochechas dele estavam molhadas. Entramos no
avião. Meus irmãos mais velhos de cabeça baixa, também não falavam nada. Eu
queria fazer perguntas, mas tinha medo. Estávamos indo embora, para onde? O
menor chorou, tossiu, ganhou uma chupeta. A babá disse para ele que logo
estaríamos na casa de nossa avó. E a mamãe? Ah, lá na frente, acho que era ela,
mas estava escuro, ela de preto, jogada num banco, o rosto enfiado nas mãos. E
o papai? Onde? Íamos sem ele?
Não sei se o voo foi curto ou longo, foi no escuro. Escuro lá fora,
escuro dentro. Dormi ou estava no meio de um sonho, não sei. Quando saí do
avião, meu padrinho veio me pegar, também sem falar. Passou a mão nos meus
cabelos, me puxou para perto dele e ficou me apertando contra ele, um tempão.
Me levou para um carro. A babá e o menor vieram atrás de nós. Minha madrinha me
beijou. Ela estava chorando. Sentei no banco de trás. E meus outros irmãos? E
minha mãe? Tinha me perdido deles. Medo. Mas a babá e o menor estavam ali,
e meus padrinhos também. Nosso carro foi
seguindo um outro. Gosto de ver as luzes da cidade. Dormi. Chegamos numa casa
toda acesa. Todas as luzes brilhavam. A sala quase sem móveis, com cadeiras e mais
cadeiras encostadas ao longo das paredes. E muita gente lá. Estavam falando
mas, quando entramos, se calaram e
ficaram olhando, aquele olhar triste e esquisito – igual ao dos homens
fardados. Tinha gente chorando. Eu queria chorar, estava com muito medo. Onde
estava minha mãe? E a vovó? A casa era dela, diferente mas era a dela. A babá
nos levou para a cozinha. Quis que eu tomasse sopa, uma canja. Não queria,
queria minha mãe. Fomos para o segundo andar, babá nos banhou e nos pôs para
dormir nuns colchões arrumados no chão. O menor chorou, queria a mamãe. Ela não
veio. Papai não veio. Mamãe estava ocupada, precisava descansar, a babá dizia,
embalando o pequeno. Acho que comemos, fizemos um lanche lá no chão do quarto,
não sei. Me sentia num sonho, num pesadelo, não sabia de nada. A cabeça inventa,
cria realidades que se confundem. O menor deve ter mamado. Posso estar
inventando, está tudo misturado na minha cabeça. Escovei os dentes com o dedo,
me lembro muito bem disso. Minha escova tinha ficado na minha casa. Tudo muito
diferente. Muito estranho, não era assim que me punham para dormir. Ninguém
contou histórias, não falavam nada. E meus outros irmãos? Tinham sumido também.
Eu me deitei pensando no meu aniversário. Papai tinha me prometido a
boneca loura. Amanhã vou ganhar presentes, pensei, e me animei um pouco. Mas, a
festa ia ser lá em casa e nós estávamos
na casa da vovó, longe. Mamãe tinha feito um vestido novo pra mim, branco com
barra de tafetá estampada de verdes e vermelhos. Mudaram a festa para a casa da
vovó? Tudo muito estranho.
Aquele meu aniversário não aconteceu. Acordei numa casa vazia. Todos
tinham sumido. Só as empregadas, a babá, as crianças. Brincamos, tinha uma
indiazinha de nove anos na casa da vovó, falava diferente. Meninos jogavam bola
na rua em frente, meus irmãos também. Ganhei um bolo com uma vela para soprar.
Uma vela para seis anos? E chegaram todos para almoçar, solenes e sérios.
Mamãe, de óculos escuros dentro de casa, de preto. Me abraçou, me deu um
presente – a boneca loura. E papai, quando vem? Hoje não, hoje não era o que
diziam. E asma, emplastro quente no peito, respirando com dificuldade fui para
o colchão no chão, a boneca junto comigo, linda, linda.
Acabei usando o vestido novo na missa de sétimo dia do meu pai. Mamãe
trocou a barra de tafetá verde e vermelha por uma preta e branca. Não me lembro
como fiquei sabendo que papai tinha ido para o céu e eu tinha que ser boazinha
porque mamãe estava muito triste, muito cansada. Papai no céu?! Custei a
entender que estavam me dizendo que ele tinha morrido. Meu irmão menor também
não tinha entendido direito. Ficava olhando para o céu pedindo para a lua trazer o papai de volta.
Brejal, 3 de agosto de 2014.
A experiência decisiva que, para quem a tenha feito,
se diz ser tão difícil de contar, nem chega a ser uma experiência. Não é mais
que o ponto no qual tocamos os limites da linguagem. (Giorgio Agamben)
Fotos: JMGLA