30 de outubro de 2010

A casa de Asterion (reconto do Minotauro)

Jorge Luís Borges (retirado do livro O aleph, trad. Flávio José Cardozo)

E a rainha deu à luz um filho que se chamou Asterion.
Apolodoro: Biblioteca, III,I.
          Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio da casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito)* estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas femininas nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma parecida no Egito.) Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Asterion, seja um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não existe uma fechadura? Mesmo porque, num entardecer, pisei a rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. O sol já se tinha posto, mas o desvalido pranto de um menino e as preces rudes do povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, se prosternava: alguns se encarapitavam no estilóbato do Templo das Tochas, outros juntavam pedras. Algum deles, creio, se ocultou no mar. Não é em vão que uma rainha foi minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que o queira minha modéstia.
          O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço em meu espírito, capacitado para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.
          Claro que não me faltam distrações. Como o carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão, estonteado. Oculto-me à sombra duma cisterna ou à volta dum corredor e divirto-me com que me busquem. Há terraços donde me deixo cair, até ensanguentar-me. A qualquer hora posso fazer que estou dormindo, com os olhos cerrados e a respiração contida. (Às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de todos os brinquedos, o que prefiro é o do outro Asterion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes reverências, lhe digo: Agora voltamos à encruzilhada anterior ou Agora desembocamos em outro pátio ou Bem dizia eu que te agradaria o pequeno canal ou Agora vais ver como o porão se bifurca. Às vezes me engano e rimo-nos os dois, amavelmente.
          Não tenho pensado apenas nesses brinquedos: tenho também meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são quatorze (são infinitos) os pesebres, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, de tanto andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo das Tochas e o mar. Não entendi isso até uma visão noturna me revelar que também são quatorze (são infinitos) os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, quatorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: em cima, o intrincado sol; embaixo, Asterion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.
          Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para buscá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensanguente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde então a solidão me magoa, porque sei que meu redentor vive e por fim se levantará do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? – me pergunto. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?
          O sol da manhã rebrilhou na espada de bronze. Já não restava qualquer vestígio de sangue.
          -    Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro apenas se defendeu.
Para Marta Mosqueta Eastman
* O original diz quatorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Asterion, essa adjetivo numeral vale por infinitos.
Picasso - Minotauro ferido IV (1933)

Nenhum comentário:

Postar um comentário