Bia Albernaz
Do coelho indigente, de natureza domesticada, Joãozinho passa a ser o coelho natural voltado para a sua necessidade. Recapturado, tem sua natureza de novo reduzida, até que o ciclo se rompe quando o coelho se torna filosófico, ao sair da sua prisão para conhecer o mundo, e ao mesmo tempo poético, tendo se libertado pela imaginação, provocando e contemplando imagens. Esta é a história de Joãozinho, o coelho pensante, que, apesar de misteriosa, não tem nada de complicada, pois como diz a sua autora, Clarice Lispector:
Todo mundo sabe tudo.
Todo mundo sabe tudo.
E uma ou outra vez, alguém redescobre a pólvora, e o coração bate.
A gente se atrapalha é quando quer falar,
mas todo mundo sabe tudo.
Capa e ilustrações de Leila Barbosa |
Na história do mistério do coelho, a voz narrativa sai da intimidade. Voz narrativa é um conceito literário que extrapola à tipologia dos textos: não é exclusiva de nenhum deles, nem poderia ser reduzida ao uso de uma técnica. É uma espécie de afinação entre o que se conta e o modo como se conta. Mais do que isso, é também o modo como o narrador dá corpo à história, como a torna tangível, próxima à sua sensibilidade e, por conseguinte, ao do ouvinte. Poderia ser comparada à embocadura, essencial para os intérpretes de instrumentos de sopro.
Pois então, na história do coelho pensante, desde o primeiro momento, do impulso de conta-la até à pulsação narrativa, a voz narrativa toma vulto pelo andamento e cadência progressivamente mais intensos a medida que, com o desenrolar dos acontecimentos, a história vira um enredo. Como a voz narrativa sai da intimidade, já que foi escrita “a pedido-ordem de Paulo [filho da autora] quando ele era menor” e também como “discreta homenagem a dois coelhos que pertenceram a Pedro e Paulo”, ela sofre uma transformação, tal como o personagem que dá título ao livro, passando da necessidade à liberdade. Essa transformação na forma relaciona-se com o que Luigi Pareyson chama de formatividade, conceito que dá ênfase à importância do processo na criação da obra de arte. Ao acentuar a relação entre o artista e sua arte, esse autor ilumina o fato de que, durante o processo de realização de uma obra, o artista produz também o seu modo de produzir, seu estilo, num diálogo constante com a matéria prima. Nessa perspectiva, o artista desce do pedestal da pura inventividade e assume também a condição de padecimento, ao se deixar conduzir pela obra, atendendo os seus desígnios, a sua especificidade.
No caso de “O mistério do coelho pensante”, fica bem clara essa presença formativa pela adoção de um estilo bastante livre e espontâneo de narrar coerente com a liberdade que pouco a pouco, e graças ao pensamento, o coelho vem a conquistar. Abrindo as portas à imaginação, a narradora recorre a uma linguagem em que a prosa alimenta-se constantemente da poesia, para espacializar a história. Com a prosa, por outro lado, ela temporaliza a experiência, que se desdobra, complexificando-se pela concomitância do passado, presente e futuro dentro da mesma história.
Assim, a narração propriamente dita é feita no passado:
Um dia o nariz de Joãozinho conseguiu farejar uma coisa tão maravilhosa que ele ficou bobo.
Pois então, na história do coelho pensante, desde o primeiro momento, do impulso de conta-la até à pulsação narrativa, a voz narrativa toma vulto pelo andamento e cadência progressivamente mais intensos a medida que, com o desenrolar dos acontecimentos, a história vira um enredo. Como a voz narrativa sai da intimidade, já que foi escrita “a pedido-ordem de Paulo [filho da autora] quando ele era menor” e também como “discreta homenagem a dois coelhos que pertenceram a Pedro e Paulo”, ela sofre uma transformação, tal como o personagem que dá título ao livro, passando da necessidade à liberdade. Essa transformação na forma relaciona-se com o que Luigi Pareyson chama de formatividade, conceito que dá ênfase à importância do processo na criação da obra de arte. Ao acentuar a relação entre o artista e sua arte, esse autor ilumina o fato de que, durante o processo de realização de uma obra, o artista produz também o seu modo de produzir, seu estilo, num diálogo constante com a matéria prima. Nessa perspectiva, o artista desce do pedestal da pura inventividade e assume também a condição de padecimento, ao se deixar conduzir pela obra, atendendo os seus desígnios, a sua especificidade.
No caso de “O mistério do coelho pensante”, fica bem clara essa presença formativa pela adoção de um estilo bastante livre e espontâneo de narrar coerente com a liberdade que pouco a pouco, e graças ao pensamento, o coelho vem a conquistar. Abrindo as portas à imaginação, a narradora recorre a uma linguagem em que a prosa alimenta-se constantemente da poesia, para espacializar a história. Com a prosa, por outro lado, ela temporaliza a experiência, que se desdobra, complexificando-se pela concomitância do passado, presente e futuro dentro da mesma história.
Assim, a narração propriamente dita é feita no passado:
Um dia o nariz de Joãozinho conseguiu farejar uma coisa tão maravilhosa que ele ficou bobo.
Mas o tempo verbal no presente aparece na história, tanto no endereçamento direto da narradora ao leitor ou ao interlocutor (já que ela conta a história para o seu filho Paulo), quanto nos momentos de digressões, considerações da narradora à margem dos acontecimentos:
Desconfio que você não sabe bem o que quer dizer natureza de coelho.
Natureza de coelho é o modo como o coelho é feito.
Desconfio que você não sabe bem o que quer dizer natureza de coelho.
Natureza de coelho é o modo como o coelho é feito.
Por fim, o tempo futuro ocorre à medida em que a história reserva um papel fundamental à narração por vir, já que a história só irá se completar no momento em que “pais e mães, tios e tias, e avós” a contarem. Pois, explica a autora, ainda na sua apresentação,
Como a história foi escrita para uso exclusivo doméstico, deixei todas as entrelinhas para as explicações orais. Peço desculpas a pais e mães, tios e tias, e avós, pela contribuição forçada que serão obrigados a dar.
Além disso, no final, a história é lançada ao futuro por uma ação incerta, que depende de um desejo para ocorrer, aparecendo, no texto, expressa pelo futuro subjuntivo:
Se você quiser adivinhar o mistério, Paulinho, experimente você mesmo franzir o nariz para ver se dá certo.
Se você quiser adivinhar o mistério, Paulinho, experimente você mesmo franzir o nariz para ver se dá certo.
A complexidade da temporalização nesta narrativa aumenta ainda mais quando se considera que o presente pode ser referente a um acontecimento atemporal:
E foi aí que ele descobriu que gostar é quase tão bom como comer.
E foi aí que ele descobriu que gostar é quase tão bom como comer.
Assim, os tempos usados nesta narração, apresentada sob a forma simples de uma conversa, expressam as suas múltiplas possibilidades enquanto experiência já que o leitor é levado a acompanhar esse movimento sinuoso de passagens no tempo sem que se dê conta, sem apresentar resistência. Ou seja: sem que a autora explique ou prepare, o pensamento do leitor incorpora a complexidade temporal do texto. Em relação a essa habilidade, a obra de Clarice Lispector é pródiga. Pela espontaneidade do seu dizer, ela inventa uma espécie de língua desinteligente. A sua maestria está em apresentar a complexidade de um modo despojado, e ainda assim denso, já que lhe interessa a linguagem obediente aos mistérios de ser, àquilo que foge às classificações redutoras, ou ao tratamento do tempo como se ele apenas se realizasse ou pudesse ser compreendido através da cronologia. Desse modo, alarga-se a realidade.
(Trecho do artigo "Poesia e filosofia em 'O mistério do coelho pensante' de Clarice Lispector)
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