14 de outubro de 2010

Objetos Insones

Alex Cerqueira
“Ave Maria”
Mais uma madrugada virando-virando. Esquerda, cara pra esta parede que a escuridão não esconde a brancura. A imagem da pequena caixa de papel com a tarja preta me persegue; pressão do travesseiro sobre o dente recém tratado no canal, bloco, coroa: quase-dor; braço sob o corpo, peso, circulação insuficiente, incômodo: quase formigamento; perna direita sobre a esquerda, calor, coxa agasalhando a coxa: quase suor; osso do tornozelo direito sobre a canela esquerda, agudo, atrapalhando: quase fere.

“Cheia de graça”
E viro para a direita, de frente para a estante. Livros vivos, lombadas coloridas, títulos presentes, autores imortais: quase gritam; garrafas insistem em relembrar sabores; as luzinhas, vermelha e verde, do filtro de linha e do monitor do computador brincam de amigo-inimigo, amigo-inimigo, piscando, acordadas. Malditos objetos insones.

“O Senhor é convosco”
Rezo. Sem concentração, sem pensar na mensagem ou conteúdo da oração. Não é uma reza, é uma repetição vazia, um movimento desesperado de esvaziar a mente, anular os pensamentos, livrar-me da vigília. A imagem da pequena caixa de papel com a tarja preta me persegue. Na pseudo-oração, uma tentativa de fuga da insônia, um jeito de não pensar na vida, na noite, na vida, na madrugada, na vida, no trabalho, na vida, na família, na vida, na doença, no não-dormir, na morte. Mais acordado que nunca.

“Bendita sois Vós entre as mulheres“
O travesseiro é baixo, alta é a necessidade de eliminar os demônios disfarçados da insônia. Toda a frágil esperança de não levantar-me esvai-se.  Levanto. Pego outro travesseiro, junto, apalpo, amacio. Deito. O lençol é quente. Levanto. Pego outro, troco, desdobro, sacudo, estico. Estico, sacudo, dobro e guardo o anterior. Deito.

“Bendito é o fruto do Vosso ventre, Jesus”
Volto a virar-virar: esquerda, parede branca, tratamento de canal, braço embaixo, calor na perna, osso do tornozelo; direita, estante, livros, garrafas, pontos de luz piscando.

“Santa Maria”
O travesseiro ficou muito alto. O lençol deixa sentir frio. Levanto. Devolvo um travesseiro, apalpo e amacio o que fica, busco o lençol antigo, desdobro, sacudo, estico. Deito. Será que fechei a torneira do gás? Toda noite de insônia vem essa dúvida. Levanto. A imagem da pequena caixa de papel com a tarja preta me persegue.

“Mãe de Deus”
Torneira do gás fechada. Como todas as noites que levantei para verificar, por todos esses anos, sempre estava fechada. Aproveito e vejo se a geladeira está fechada. Está. Confiro se a torneira do banheiro está pingando. Não. Confirmo se liguei a secretária eletrônica. Liguei. Pus o telefone celular para carregar? Sim.

“Rogai por nós pecadores...”
Vencido, abro a caixinha de remédios.

“Agora e na hora da nossa morte”
 Quase desistindo, agora me viro, primeiro para a direita. A luzinha verde do monitor até que é simpática. Livros e garrafas já não incomodam tanto. Demoro-me mais a virar para a esquerda. Rosto na direção da parede branca, nem tão branca, nem tão próxima. A pressão do travesseiro sobre o dente tratado é mais suave. Não me lembro do próprio corpo. Tento rezar.

”Amém”.
www.sanlamuerte.net/

4 comentários:

  1. Não poderia deixar de ler... adorei o texto...

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  2. Nossa, por instantes senti angústia, doeu dente,ossos, olhei objetos, mas ao contrário do sono reparador dos males, me levantei da cadeira e continuei acordada, adorei!

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  3. A descrição do prcesso da insônia está perfeito, assim como o recurso ao "santo" remedinho, por um tempo.
    Alex, você leva o maior jeito; continue.Um abraço,
    Solange

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  4. A insônia foi tanta que fez com que eu errasse a concordância - impactante.

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