1 de outubro de 2010

Exceção: Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar

João Cabral de Melo Neto
Por que é o mesmo o pudor
de escrever e defecar?
Não há o pudor de comer,
de beber, de incorporar,
e em geral tem pudor
quem pede do que quem dá.
Então por que quem escreve,
se escrever é afinal dar,
evita gente por perto
e procura se isolar?

Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.

(Mas no pudor do escritor
o mais curioso está
em que o pudor de fazer
é impudor de publicar:
com o feito, o pudor se faz
se exibir, se demonstrar,
mesmo nos que não fazendo
profissão de confessar,
não fazem para se expor
mas dar a ver o que há.)

Museu de Tudo: poesia, 66-74. Homenagens a Vinicius, Marques Rebelo, Manuel Bandeira, Mondrian, Rilke, Proust, ao futebol e à aspirina. Capa: Eugênio Hirsch.

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