26 de dezembro de 2010

Férias em janeiro

ParkeHarrison_FlyingLesson   BONS ESCRITOS, BOAS LEITURAS

Cavalo Baio - o mistério que abalou Penedo em 1960 (recado)

Para ler mais sobre o autor e a sua edição realizada com o apoio dos empresários da região, clique aqui.
A partir de  um  atentado em Penedo na década de 1960,  Gustavo Praça desenvolve uma trama policial misturando personagens fictícios e históricos, como Toivo Uuskalio e Toivo Suni, pioneiros na criação da colônia finlandesa na década de 1930, ou ainda como Macedo Miranda, escritor resendense que inspirou o protagonista do livro - um jornalista dublé de detetive com alma de pintor. Acompanhando-o,  atrás de um certo cavalo baio de canelas pretas, o leitor passeia pelos vales da Mantiqueira e visita os povoados de Visconde de Mauá, Mirantão e Santo Antônio, com seus roçados de milho e de feijão, seus bois de invernada, seus primeiros habitantes vindos da cidade. De leve, o livro propõe algumas questões sobre o modo de ocupação desta região que cresce no meio de interesses muitas vezes conflitantes, entre turismo e agricultura, entre as culturas finlandesa, do interior de Minas, de alternativos e de veranistas. Em meio a esta difícil equação, desponta o mistério de Penedo.

24 de dezembro de 2010

Livro pra escrever (colagem como poética)

           Tomando como referência um texto de Marjorie Perloff sobre a colagem na poesia, percebe-se como a imagem de uma solidão que encontra (ou “se cola”) à outra é poderosa e produtiva. A colagem, concebida nas artes plásticas como uma justaposição metonímica de objetos, aproxima-se da escrita, enquanto montagem ou edição de textos cotejados pela leitura ou pela reunião de fragmentos de narrativas colhidas no cotidiano. Através da colagem, reúne-se temporariamente elementos em uma nova composição.
Josep Renau Berenguer
          Usualmente considerado pejorativo, o processo de colagem de textos possibilita, porém, quebrar a linearidade discursiva, ao transferir um trecho de um contexto para outro. Segundo Perloff, na colagem, realizamos uma dupla leitura, na medida em que os fragmentos mantêm sua relação com o texto original, ao mesmo tempo em que se incorporam a uma totalidade diferente.
         Na nova ordenação propiciada pela colagem, predominam as relações de similaridade, equivalência e identidade, assim como suas formas negativas – a dissimilaridade, a não equivalência e a não identidade. Persistem ainda a concatenação, o agrupamento ou a associação, enquanto minimizam-se as relações de implicação, sequenciação, negação e subordinação. Em termos das idéias ou imagens justapostas, pelo processo da colagem, desenvolve-se mais a sua coordenação do que a subordinação entre elas; mais a semelhança e a diferença do que a lógica, seqüência ou qualificação dos fragmentos escolhidos.
          Nessa perspectiva, podemos compreender a estreita relação entre os atos de escrever e ler. Para escrever um novo texto, descongelam-se trechos retirados de seu contexto, dispondo-os em uma outra composição. Por outro lado, com a atividade da colagem escrita-leitura, quebra-se a ilusão que cerca os livros como portadores de verdades acabadas. Considerando ainda a leitura em termos amplos, como coleta de fragmentos das narrativas do cotidiano, promove-se também – através da colagem de textos impressos e textos orais – uma quebra da hierarquia entre o impresso e o expresso, o público e o privado.
          Mas, ao destacar um trecho e readeri-lo a um outro contexto, ao transplantar e citar, o autor da colagem não estaria se valendo da autoridade alheia para fazer um texto próprio? Tais ações contribuem de fato para a quebra de discursos totalizadores ou seriam apenas fruto da preguiça de pensar por conta própria? Como garantir que esse método de justaposição, “camada sobre camada”, leve a um texto poético, desestabilizador? Como mantê-lo aberto à crítica, mesmo que se recuse a se centrar num ponto único?
          Tais questões, embora importantes, não conseguem mais estancar o poder da colagem como processo produtivo. Em realidade, afirma Perloff, a colagem encontra-se hoje não somente nos domínios das artes plásticas ou da literatura. No próprio domínio da crítica, absorve-se a poética da colagem como importante modo de teorização, e é também matéria-prima da propaganda, o que reflete, para além da moda, um meio mais eficaz de comunicação, considerando os indivíduos, em princípio, como colagens.
Sol de Maiakovski, de Augusto de Campos
Perloff, Marjorie. “Collage and poetry”. In: Kelly, Michael (org.) Encyclopedia of Aesthetics. New York: Oxford U Press, 1998. O artigo aqui citado encontra-se disponível na internet no site da autora http://marjorieperloff.com/articles/collage-poetry/ (disponível em 17/10/09).
Bia Albernaz

22 de dezembro de 2010

Rapidinha 5

Arlette Santos
          Como acontece quase todos os dias, após o café saí para caminhar um pouco e comprar algo para completar a despensa. Sempre falta alguma coisa.
          Antes de atingir a Avenida 28 de Setembro, ainda na Visconde de Abaeté, encontro uma velha conhecida. Rapidamente, "me baixa o arquivo": Curso Normal na Escola Carmela Dutra, em Madureira, colega de minha irmã. Foi professora na escola dos meus filhos. Por coincidência, passávamos férias em Lambari. Ficamos camaradas. Nossos filhos tomaram seus rumos, ela mudou de apartamento, ainda mora em Vila Isabel. Creio que não nos víamos há uns dois anos. Mas todo este passado esvoaçou. Sua reação, ante a minha presença, é que me fez pensar. Junto com a alegria do reencontro, ela demonstrou uma tremenda surpresa. Por que será? Como se eu não soubesse.

19 de dezembro de 2010

Livro pra escrever (a colagem leitura-escrita)

Bia Albernaz
    A idéia de desenvolver um texto sobre a relação entre a escrita e a leitura surgiu primeiramente pelo desejo de consolidação do meu trabalho como professora de diferentes cursos de redação criativa, mas também especificamente a partir de um outro artigo que redigi sobre bibliotecas escolares. Nele, encontram-se listados sete desafios para os profissionais da área, dentre os quais a necessidade de preparar a biblioteca não só como um lugar de leitura mas também de escrita. Isso porque um leitor faz anotações, escreve enquanto lê. De fato, testemunha-se tal necessidade, mesmo que satisfeita de forma indevida, pela enorme quantidade de livros sublinhados que somos obrigados a consultar. É óbvio portanto que o impulso existe.
No New Yorker há um artigo de Ian Frazer sobre a marginalia em livros que pertenceram a escritores famosos.
Como os métodos de criação e ordenação de notas dá forma a um manuscrito "final", venha ele a ser publicado ou não? Perguntas como esta serviram de base para um curso oferecido pelo Max Planck Institute for the History of Science.
      O leitor-escritor, principalmente o pesquisador ou o estudante, transcreve frases, destaca palavras e rascunha pensamentos, dúvidas e associações com outros autores, absorvendo, pelo processo da escrita, as diversas leituras subjacentes a um texto, direcionando-as desse modo para um texto único. Um texto, tal como diz Michel Schneider, é feito desse modo: por fragmentos, combinações, acidentes, reminiscências, empréstimos[1]. Muitas vezes, escritores escrevem a partir de um vazio, de interrogações e insatisfações deixados por um livro ou uma série deles, o que se coaduna com a imagem da leitura como navegação. Os livros, como guardiões de saberes móveis, melhor sorte não poderiam ter do que poder espalhar tais saberes em novos textos.
    Escrita e leitura não são processos separados. Se assim fossem, estariam condenados a uma existência congelada, coisificada e não alcançariam o ápice de suas vidas – a recriação do leitor e do mundo. De fato, essa vida paralela que gravita ao redor dos textos consiste naquilo que nos acostumamos chamar de “interpretação”, atividade “entre” a leitura e a escrita. Quando lemos-escrevemos, pensamos e saímos do automático, em atenção ao não-dito, ao invisível, ao ainda não pensado. No entanto, Richard Mitchell, autor de “The underground grammarian”, observa o modo como fugimos ou de como somos impedidos de exercer a responsabilidade da verdade no ato da escrita; da coragem de assumir posições ou incertezas por escrito, dirigidas a leitores concretos. Ao invés disso, aprendemos a cultivar uma torrente de eufemismos e generalizações suavizadas que, aos poucos, passamos a identificar com a própria escrita [2].
    Uma vez, ouvi de um advogado: “por escrito? Nem carta para a namorada!” Ora, a escrita compromete porque traduz pensamentos, constituindo-se como símbolo ou celebração dessa atividade essencial para sermos humanos. Mas, a fim de fugir de compromissos, ao longo de nossa formação, aprendemos a obstruir as passagens entre vida interior e exterior, o que transforma a escrita em um tormento, em uma arte de preencher linhas, sem nada dizer nas entrelinhas. Escreve-se para agradar professores ou editores preocupados em atender um mercado no qual leitores padronizados esperam textos tipificados. Felizmente essa regra não consegue deter a produção solitária de escritores criativos que insistem em se comprometer, em provocar nos leitores a felicidade de entrever o novo, de apreender algo nunca antes pensado.
    O solitário traz o singular. A solidão é necessária ao ato da escrita. Tal afirmação choca-se com o esforço socializador empreendido pela escola, pela família, enfim, pelas instituições formadoras. Choque produtivo, contudo, à medida que essas mesmas instituições se dão conta da dificuldade de crianças, jovens ou adultos aprenderem sem desenvolverem a capacidade de estar só. Pela indissolúvel relação entre leitura e escrita, compreendemos: a solidão pode encontrar outra solidão, a diferença possibilita a identidade.
Referências:
[1] Apud JACOB, Christian. “Ler para escrever: navegações alexandrinas”. In: O poder das bibliotecas – a memória dos livros no Ocidente. Trad. Marcela Mortala. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000, p. 67.
[2] Richard Mitchell pôs na rede todos os seus livros. Cf no site http://www.sourcetext.com/grammarian/ (disponível em 17/10/09). 

17 de dezembro de 2010

Rebeldia dramática

          Onde há dor e prazer, impetuosidade da liberdade, e defesa apaixonada do direito e da verdade, ou do amor e da ambição, há pathos, problema, condições de drama. O arrebatamento patético diferencia-se do êxtase lírico, ainda que muitas vezes um se transforme no outro. Antígona vive de seu objetivo. Não se limita à realidade atual e suas leis, ela antecipa a realidade que virá a ser. Tudo parece inverossímil e ao mesmo tempo está dentro da capacidade de percepção humana. Antígona dirige-se a si mesmo e impetuosamente blasfema (e atua) contra a lei. Em sua atuação, misto de agir e dizer, procura persuadir a si mesma e aos outros da estranha condição de sua existência no mundo.   
Cf. “Conceitos fundamentais da poética” de Staiger
*
Impetuosidade nascida da vontade de potência
Antigona - aspirante a atriz em 1953 - Univ. Católica da América em Washington.
ISMENE – Vais enterrá-lo contra a interdição geral?
ANTÍGONA – Ainda que não queiras ele é teu irmão / e meu; e quanto a mim, jamais o trairei.
ISMEME – Atreves-te a enfrentar as ordens de Creonte?
ANTÍGONA – Ele não pode impor que eu abandone os meus.
ISMENE – Pobre de mim! Pensa primeiro em nosso pai, / em seu destino, abominado e desonrado, / cegando os próprios olhos com as frementes mãos / ao descobrir os seus pecados monstruosos; / também, valendo-se de um laço retorcido, / matou-se a mãe e esposa dele – era uma só – / e, num terceiro golpe, nossos dois irmãos / num mesmo dia entremataram-se (coitados!), / fraternas mãos em ato de extinção recíproca. / Agora que restamos eu e tu, sozinhas, / pensa na morte inda pior que nos aguarda / se contra a lei desacatarmos a vontade do rei e a sua força. E não nos esqueçamos / de que somos mulheres e, por conseguinte, / não podemos enfrentar, só nós, os homens. / Enfim, somos mandadas por mais poderosos / e só nos resta obedecer a essas ordens / e até a outras inda mais desoladoras. / peço indulgência aos nossos mortos enterrados / mas obedeço, constrangida, aos governantes; / ter pretensões ao impossível é loucura.
ANTÍGONA – Não mais te exortarei e, mesmo que depois / quisesses me ajudar, não me satisfarias. / Procede como te aprouver; de qualquer modo / hei de enterra-lo e será belo para mim / morrer cumprindo esse dever: repousarei / ao lado dele, amada pro quem tanto amei / e santo é o meu delito, pois terei de amar / aos mortos muito, muito tempo mais que aos vivos. / Eu jazarei eternamente sob a terra / e tu, se queres, foge à lei mais cara aos deuses.
ISMENE – Não fujo a ela; sou assim por natureza; / não quero opor-me a todos os concidadãos.
ANTÍGONA – Alega esses pretextos, mas não deixarei / sem sepultura o meu irmão mais querido.
ISMENE – Ah! Infeliz! Quanto preocupação me causas!
ANTÍGONA – Não deves recear por mim; cuida de ti!
“Antígona”, Sófocles, trad. Mário da Gama Kury.

*
    Apenas uma certeza, a situação atual não pode se manter
"Um copo de cólera" (1988). Dir. de Aluízio Abranches, com Alexandre Borges e Julia Lemmertz
E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?” e como ela dissesse “mais tarde” eu então me levantei e fui sem pressa pra cozinha (ela veio atrás), tirei um tomate da geladeira, fui até a pia e passei uma água nele, depois fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate, salgando pouco a pouco o que ia me restando na mão, fazendo um empenho simulado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como os dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos não desgrudavam da minha boca, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse, eu só sei que quando acabei de comer o tomate eu a deixei ali na cozinha e fui pegar o rádio que estava na estante lá da sala, e sem voltar pra cozinha a gente se encontrou de novo no corredor, e sem dizer uma palavra entramos quase juntos na penumbra do quarto. 
“Um copo de cólera”, Raduar Nassar
   * 
A cena como um clarão
Kazuo Ohno em foto de Eikoh Hosoe
        A ação do pathos pressupõe resistência – choque brusco ou simples apatia – que tenta romper com ímpeto. O ritmo complicado no pathos não nos contagia (como na disposição anímica), e sim purifica a atmosfera com pancadas rudes como as de uma tempestade. A comoção patológica não necessita da consciência, nem saber de sua origem ou finalidade. Investe-se contra o status quo, mesmo sem querer, pois sente-se a tensão presente-futuro.
       No texto dramático, palavras e gestos co-atuam; o leitor percebe arte e realidade co-atuantes. O personagem dramático ou herói patético consome-se em sua individualidade, arrebata-se pelo pathos, e o artista dramático deixa que as razões históricas sobreponham-se às estéticas.
Staiger

14 de dezembro de 2010

Rebeldia épica - caminho mais importante do que meta

Circe transformando os homens de Ulisses em bestas - Giovanni Benedetto Castiglione
 O autor épico não avança para alcançar o alvo e sim, de antemão, dá-se um alvo, para onde ele avança, examinando tudo em volta atenciosamente. O herói épico demonstra reflexão. A força de sua alma atua tão livremente que ela pode separar uma onda por assim dizer dentre todo o oceano de sentimentos que lhe corre por todos os sentidos; pode sustê-la, dirigir a ela a atenção e tornar-se consciente de que percebe essa atenção. No texto épico, o caminho é mais importante do que a meta. (cf. Staiger em "Conceitos fundamentais da poética") 
***
Na épica, não há como escapar do destino. O que o autor mostra é como, em cada ação por menor que seja, ele já está presente e atuante, tal como se percebe neste trecho da "Odisséia", de Homero, trad. Jaime Bruna:
          Escapamos, por fim, aos rochedos e à terríveis Caríbdis e Cila. Chegamos logo à magnífica ilha do deus, onde havia belas vacas de fronte larga e muitas nédias ovelhas de Helio Hipérião. Então, ainda no mar, a bordo do escuro barco, ouvi os mugidos das vacas ao relento e os baldios das ovelhas. Assaltaram meu coração as palavras do cego adivinho, o tebano Tirésias, e as de Circe de Eéia, que tanto me recomendou evitasse a ilha de Helio, alegria dos homens. Falei, por fim, aos companheiros, com peso no coração:
          - Escutai, companheiros, as minhas palavras, por mais que estejais sofrendo, para eu vos revelar os vaticínios de Tirésias e os de Circe de Eéia, que tanto me recomendou evitasse a ilha de Helio, alegria dos homens, pois ali, disse ela, está nosso perigo mais terrível. Por isso, tocai o negro barco ao largo da ilha.
          Assim falei e o coração se lhe partiu. Prontamente me respondeu Euríloco com palavras odiosas:
          - Tu és cruel, Odisseu; tens robustez incomum e teus membros não se cansam. Deves tê-los todos feitos de aço, tu que, em vez de permitires aos companheiros, mortos de cansaço e de sono, que ponham pé em terra, quando podemos preparar uma ceia saborosa numa ilha em meio das ondas, mandas continuar errando pela rápida noite, no brumoso mar, arredados da ilha. Nascem da noite os ventos ruins, perdição dos navios. Como se pode escapar a um fim abismal, se vier de surpresa uma borrasca de Noto, ou de Zéfiro violento, ventos que mais embarcações despedaçam até sem aprovação dos deuses soberanos? Não! Atendamos agora ao convite da negra noite; preparemos uma ceia sem nos afastarmos do ligeiro barco. Quando clarear, embarcaremos e singraremos o vasto mar.
         Assim falou Euríloco e os demais tripulantes o apoiaram. Reconheci, então, que um deus meditava nosso infortúnio e, proferindo aladas palavras, lhes disse:
         - Verdadeiramente, Euríloco, vós me constrangeis porque sou um só; eia, porém, prestai-me todos um poderoso juramento de que, se depararmos uma manda de vacas ou grande rebanho de ovelhas, ninguém por seu ruim desatino matará uma vaca ou uma ovelha, satisfazendo-vos com a comida que Circe imortal nos forneceu.

13 de dezembro de 2010

Rebeldia lírica - Disposição anímica

“Conceitos fundamentais da poética”, Staiger
Ouça um trecho desta obra de Stockausen. Olhe qualquer coisa enquanto escuta, coloque-se na coisa e a coisa em você. E escreva .
          Chegou a hora de nos voltarmos para o conceito fundamental da “disposição anímica” (Stimmung). Não se trata da constatação de uma situação da alma. A “disposição” já foi, aliás, compreendida como tal, como objeto artificial da observação. Originalmente, porém, a disposição não é nada que exista “dentro” de nós; e sim, na disposição estamos maravilhosamente “fora”, não diante das coisas mas nelas e elas em nós.
           A disposição apreende a realidade diretamente, melhor que qualquer intuição ou qualquer esforço de compreensão. Estamos dispostos afetivamente, quer dizer possuídos pelo encanto da primavera ou perdidos no medo do escuro, enebriados de amor ou angustiados, mas sempre “tomados” por algo que espacial e temporalmente – como essência corpórea – acha-se em frente de nós.
           É portanto lógico que a língua fale tanto da disposição da noite como da disposição da alma. Ambos são uma e a mesma coisa sem distinção. As palavras de Amiel “un paysage quelconque est um état de l’âme” (qualquer paisagem é um estado de alma) reafirmam-se aqui. Tal frase não se adapta apenas à paisagem. Todo ente em disposição é antes estado que objeto. Este ser estado é o modo de ser do homem e da natureza na poesia lírica.

10 de dezembro de 2010

Apresentação da personagem por ela mesma

Beth Brait em "A personagem"
          Quando a personagem expressa a si mesma, a narrativa pode assumir diversas formas: diário íntimo, romance epistolar, memórias, monólogo interior. Cada um desses discursos procura presentificar a personagem, expondo sua interioridade de forma a diminuir a distância entre o escrito e o “vivido”. No artifício do diário, o emissor, a voz narrativa, não pressupõe um receptor. Dessa forma, cada página procura expor a “vida” à medida que se desenvolve, flagrando a existência da personagem nos momentos decisivos de sua existência, ou pelo menos nos momentos registrados como decisivos.
          No romance epistolar, assim como nas memórias, o aparente monólogo narrativo tem, diferentemente do diário, um receptor em mira, ainda que esse destinatário não esteja implicado nos acontecimentos. Por meio desse recurso, a caracterização da personagem num tempo passado que é recuperado pela narrativa funciona como uma maneira sutil, um pretexto para mostrar o presente e as nuances da interioridade.
          O monólogo interior é o recurso de caracterização de personagem que vai mais longe na tentativa de expressão da interioridade da personagem. O leitor se instala, por assim dizer, no fluir dos “pensamentos” do ser fictício, no fluir de sua “consciência”. Das narrativas contemporâneas, o Ulisses de James Joyce é a obra que tem merecido destaque pela primorosa utilização desse recurso que permite, ao longo do romance, expor o fluir caótico do jorro da consciência das personagens, traduzindo a integridade de cada uma.

Sim porque ele nunca fez uma coisa como essa antes como pedir pra ter seu desjejum na cama com um par de ovos desde o hotel City Arms quando ele costumava fingir que estava de cama com voz doente fazendo fita para se fazer interessante para aquela velha bisca da senhora Riordan que ele pensava que tinha ela no bolso e que nunca deixou pra nós nem um vintém tudo pra missas para ela e para alma dela grande miserável que era com medo até de soltar 4 x. para seu espírito metilado me contando com todos os achaques dela com aquela (.. .).
          
          Essas são apenas algumas linhas do longo monólogo de Molly Bloom, mulher de Leopold Bloom, que ocupa mais de cem páginas do final do romance. A radicalização dessa forma de caracterizar a personagem, flagrada na ausência de pontuação, no volume de sintagmas que se sucedem de forma a reproduzir um jorro de consciência que obedece a um mínimo de sintaxe, permite a confluência de conteúdos psíquicos díspares e a reprodução dos movimentos alógicos dos pensamentos apanhados em seu estado de nascimento     e/expressão.

          Também na escritura de Virgínia Woolf e Marcel Proust podem-se encontrar os monólogos de reminiscência e antecipação, as passagens de impressões sensoriais, os ritos de identificação personagem-narrador e até a eliminação total do “eu” narrativo, como acontece em algumas obras de Ricardou Ollier e Robbe-Grillet, com o claro intuito de revelar níveis da vida mental dificilmente explorados ou apreensíveis por outros meios. Além disso, essa técnica possibilita a apreensão da interioridade da personagem, de forma a expor a maneira como a consciência percebe o mundo.
Para visualizar o texto na íntegra, clique aqui.

Pessoas X Personagens

Antônio Cândido em "A personagem de ficção"
Quando abordamos o conhecimento direto das pessoas, um dos dados fundamentais do problema é o contraste entre a continuidade relativa da percepção física (em que fundamos o nosso conhecimento) e a descontinuidade da percepção, digamos, espiritual, que parece freqüentemente romper com a unidade antes apreendida. No ser uno que a vista ou o contato nos apresenta, a convivência espiritual mostra uma variedade de modos-de-ser, de qualidades por vezes contraditórias.

Na vida, estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de podermos conferir certa unidade à sua diversificação essencial, à sucessão dos seus modos-de-ser. No romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável, que é a lógica da personagem. A nossa interpretação dos seres é mais fluída, variando de acordo com o tempo ou as condições da conduta. No romance, podemos variar relativamente a nossa interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza de seu modo-de-ser. 
Para acessar ao livro na íntegra, clique aqui.

6 de dezembro de 2010

Invocações (memória e ficção) - outro trecho

 Sergio Sant'Anna
          No dia seguinte, o peru, enquanto ser vivo, já estava completamente esquecido, sem lástima, para tornar-ne cheiro tentador de carne assada que se espalhava por toda a casa, e depois gosto delicioso, do qual se desfrutava sem nenhuma culpa. O almoço de Natal da família era sempre realizado em nossa casa, e a ele compareciam os dois irmãos de minha mãe com suas mulheres, sendo que somente um dos casais tinha uma filha. Quanto aos pais de minha mãe, apenas minha avó era viva, e morava conosco. Da família de meu pai raramente vinha alguém, pois moravam, meus avós e três tias, em Catalão, no interior de Goiás. para chegar a Catalão, naquele tempo, era preciso fazer uma demorada viagem aérea num bimotor DC3 até Araguari, em Minas, seguida de outra demorada etapa terrestre.
          Entre os dois tios, aqui no Rio de Janeiro, eu e meu irmão tínhamos preferência indisfarçável pelo mais velho, Luiz, nos sentíamos totalmente seduzidos por ele que, não tendo àquela época filhos, era uma espécie de segundo pai, mais liberal e divertido, para nós. Mulherengo, nos contava em segredo suas experiências amorosas, revelando para nós os assuntos do sexo, totalmente vedados em nossa casa. E, o mais importante, detinha a senha mágica que nos abria os bastidores do Fluminense Futebol Clube, pois, além de jornalista esportivo, foi algumas vezes Diretor de Imprensa do clube, o que nos permitia ter acesso, em sua companhia, aos jogadores do time tricolor, uma verdadeira glória para nós. E, se esta é uma história de fantasmas, é de fantasmas tricolores, entre eles o de minha mãe, torcedora fervorosa do Fluminense e que ia muitas vezes ao estádio de Laranjeiras -, posteriormente, aos jogos do time no Maracanã.
          Mas, como um texto que se esconde atrás de outro texto, um fantasma que se oculta sob outro fantasma, eis que, de repente, de regiões mais profundas, surgiu outro morto e passei eu a invocá-lo no lugar de minha mãe, não apenas para que me guiasse neste texto como para que figurasse nele como seu personagem principal, com quem tomarei diversas liberdades da ficção, sem deixar de ser fiel à sua pessoa.
          Esse fantasma, de um morto mítico, que pairava como o grande ausente de nossas festas de natal, é o de um outro tio materno, que não cheguei a conhecer , pois somente minha irmã, dos filhos de meus pais, era nascida, e tinha um ano de idade quando ele morreu de tuberculose, em 1939, aos vinte e seis anos. Seu nome era Carlos, e a família verdadeiramente cultuava sua memória. Além de médico, esportista de várias modalidades (seu apelido era Secura, por ser "seco" por esporte), criador de passarinhos, excursionista de montanha, fotógrafo, dotado de uma bela voz, segundo se dizia, e tocador de violão, fora goleiro amador do Fluminense, já no início do profissionalismo no futebol carioca. Na mesma pasta em que vou guardando os rascunhos deste texto há uma foto dele com o time tricolor que disputou e venceu o campeonato carioca da segunda divisão, reservada a amadores, em 1932, enquanto na primeira divisão jogavam os profissionais do clube. Uma outra foto que havia em nossa casa e que me causava fortíssima impressão, mostrava-o com uma cobra não venenosa enrolada no braço. Era seu "bicho de estimação", criado num viveiro de fundo de quintal e, às vezes, ele saía com ela no bolso para de repente mostrá-la na rua ou no bonde, a fim de assustar as pessoas. Sua coragem e sangue-frio, segundo minha mãe, levavam-no a fazer defesas arriscadíssimas, caindo aos pés de atacantes adversários, e era comum que chegasse em casa todo esfolado e cheio de mercuro-cromo na pele.
          Esse tio, sempre o amei, até idolatrei, sem conhecê-lo. Então acho natural que, ao invocar minha mãe morta, tenha chegado até ele, ou mesmo a recebê-lo, e é aí que começo a entrar no território da ficção, da fantasia. Sim, porque tive a exata sensação de estar com ele em certas situações, como entre as traves de um gol, num jogo do Fluminense, no estádio do tricolor em Laranjeiras, digamos que contra o Botafogo. Ele joga na partida preliminar, no início da tarde, entre os times da segunda divisão dos dois clubes e, num momento em que a bola é lançada pelo ponta-direita botafoguense sobre a área tricolor, Carlos sai do gol, com segurança e elegância, para saltar e agarrar a bola sobre a cabeça de todos. É um lance comum de partida, mas revivo-o num clima onírico, quase fazendo a defesa junto com o tio, ouvindo o barulho da bola cortando o vento, o estádio em silêncio, como num sonho. Logo a seguir, num outro ataque do Botafogo, no finalzinho do jogo, que o Fluminense está ganhando por 1 a 0, a bola é chutada no ângulo pelo centroavante alvinegro e Carlos, numa ponte espetacular, joga-a para escanteio, agora sob gritos e aplausos intensos da torcida. Dessa vez não ousei ser mais do que espectador, mas postado logo ali, atrás do gol, ouvindo o barulho, o impacto da bola sendo chutada e depois defendida.
          Esse barullho de uma bola sendo chutada ou defendida, ou batendo numa trave ou se aninhando no fundo de uma rede, ouvi-o muitas vezes, de verdade, com emoção, durante a adolescência, acompanhando o Fluminense em jogos de juvenis, aspirantes e profissionais, em campos pequenos do Rio, onde um torcedor podia se colocar bem atrás de um gol, separado dele apenas por um alambrado. mas é principalmente de treinos do Fluminense em Laranjeiras, aos quais eu ia com meu tio Luiz, quando menino e adolescente, que o som da bola retorna aos meus ouvidos.
           Pulando os canos grossos de ferro que separavam, naquele tempo, o campo da arquibancada ou da tribuna social, no Fluminense eu ia me sentar, com meu irmão e outros meninos, atrás da meta defendida por outro Carlos, o grande Carlos Castilho, goleiro do Fluminense e da seleção brasileira. Atuando entre os reservas, contra o ataque titular, para ser mais exigido, Castilho, num simples treino, mostrava toda a sua categoria, ora fazendo defesas difíceis ou mesmo dificílimas, ora apenas mostrando o seu grande senso de colocação, tudo o que se confirmava nas partidas oficiais, tendo ele recebido da torcida o apelido de São Castilho. E jamais me esquecerei de uma falta cobrada, com barreira, pelo fenomenal meia-armador Didi, naquele tempo também tricolor, fazendo a bola subir e depois descair, na sua famosa folha seca; bola que Castilho foi buscar no ângulo direito, espalmando-a para escanteio. para melhor treinar os jogadores, o técnico Zezé Moreira mandou repetir a cobrança, e Didi, dessa vez, meteu a bola no ângulo esquerdo, mas Castilho defendeu-a do mesmo jeito. O técnico ordenou nova cobrança e Didi, marotamente, chutou a bola rasteirinha junto à barreira, o que quase nunca fazia, e Castilho foi pego de surpresa e ficou parado, vendo a bola entrar no canto direito. E os dois craques riram e se abraçaram.
          Se perguntassem ao menino que eu era dos dez aos catorze anos quem eu mais admirava no mundo, acredito que responderia sem hesitação que o Castilho. Achava-o, inclusive, bonito, contrariando a opinião de minha mãe. E, observando-o nos treinos e jogos, quantas vezes não imaginei meu tio Carlos jogando ali naquele espaço, em Laranjeiras?
          Carlos Castilho se suicidou em 2 de fevereiro de 1987, aos cinquenta e nove anos. Devastado por uma depressão, às vésperas de voltar para a Arábia Saudita, onde era treinador de um clube, pulou da sacada do apartamento da ex-mulher, Vilma, de quem era muito amigo. Segundo ela, e conforme publicado na revista Placar de 16 de feveriro de 1987, ele ficou andando de um lado para outro no apartamento e esteve na sacada, olhando fixo para baixo; ela o chamou para dentro, ele veio, ela lhe deu um comprimido de Lexotan, mas, de repente, em passos decididos, ele voltou para a sacada e se jogou.
          Senti a morte de Castilho quase como se fosse de uma pessoa da família e, como outros, não pude deixar de associar, numa coincidência macabra, seu mergulho no espaço aos seus saltos para grandes defesas. De acordo com as leis cruéis e inflexíveis da religião católica, os suicidas perdem suas almas, são condenados para sempre ao inferno. Existiriam, então, demônios, e, para os mais desesperados, que são os suicidas, mais desespero, total e definitivo. Como amar um Deus assim, que condenaria ao suplício eterno algumas de suas criaturas? Então passo por cima dessa prescrição sinistra e invoco também o Castilho, para que me ilumine neste texto, e que ele seja também uma espécie de oração em sua homenagem. Para que, caso subsistam as almas para além da vida, a sua esteja acolhida na paz e na felicidade eternas.
Para ler o trecho inicial do texto "Invocações (memórias e ficção)" de Sergio Sant'Anna, clique aqui. CONTINUA.


Arte poética

Não quero morrer não quero

apodrecer no poema

que o cadáver de minhas tardes
não venha feder em tua manhã feliz
                        e o lume

que tua boca acenda acaso das palavras

- ainda que nascido da morte -
                     
                       some-se aos outros fogos do dia
                   
                       aos barulhos da casa e da avenida

                       no presente veloz

Nada que se pareça
a pássaro empalhado, múmia

de flor
dentro do livro
                        e o que da noite volte
volte em chamas
         ou em chaga
         vertiginosamente como o jasmim

que num lampejo só
ilumina a cidade inteira
                                                     Ferreira Gullar

4 de dezembro de 2010

Vocabulário de afetos (o exercício)

1. Escolha pelo menos 10 palavras que uma coisa qualquer lhe sugira. (Uma vez, fizemos este exercício com conchas.)
2. Procure encher cada palavra de significado ou afeto.
3. Pare em cada uma delas, defina-a (a exemplo dos textos dos "Vocabulário de afeto I, II, III, IV e o último").
4. Depois costure-as num texto, concentrando-se na coisa escolhida. (Não esqueça do título.)

Vocabulário de afetos (o último)

O elemento terra
Rui Lage (poeta)
Não me sinto mais próximo de certas palavras do que de outras, nem consigo escolher palavras prediletas, por isso optei por contabilizar a ocorrência de palavras no meu último livro, “Berçário”, tentando perceber de quais me socorria mais vezes, e cheguei à seguinte conclusão:
Terra – Não a terra que significa mundo, planeta (ou sequer a terra natal), mas a terra enquanto matéria orgânica e mineral. A terra como origem, fonte, raiz, alimento, como destino último e comum dos homens, lugar de eterna criação e destruição, princípio de vida e de morte.
Pensamento – Como valor de substantivo concreto, e não abstrato. Coisa entre coisas. Uma espécie de antena, atenta aos padrões, ritmos e texturas da natureza. Mais próximo dos sentidos (e dos instintos) que da consciência ou do entendimento. Um “metasentido”. Uma palavra com conotações de tranquilidade, ao contrário da consciência, que é um conceito trágico, que divide, que angustia (que “faz de nós todos covardes”), que coloca problemas de alteridade. O pensamento como instrumento adequado à contemplação da natureza. Coisa para usar com os olhos, como no “Guardador de Rebanhos” (uma doença, portanto).
Pedra – Aquilo em que esbarra o pensamento. Não é possível ir além da pedra, a mais perfeita escultura da natureza. Não há duas iguais. Nada resiste ao tempo como uma pedra. Também não há nada que me lembre de forma tão evidente a lei da gravidade, à qual os homens também cedem, como dizia Heine. Pode ser polida, suave e circular, como um seixo. E os seixos cantam quando batem uns nos outros. As pedras habitam lugares no mundo onde é impossível aos homens sobreviver: no fundo dos oceanos, encravadas no gelo dos pólos, nos rios que seguem o seu curso no coração de inacessíveis florestas.
Poço – Quando olhamos para dentro de nós, não vemos nada, mas escutamos o nosso eco. Um eco amplificado, límpido, fresco. O auto-conhecimento. Pode ser um lugar que cai para dentro de nós (do abismo de nós). E no poço costuma haver rãs que mergulham para dentro de si, como no poema de Bashô.
Sombra – A substância de que somos feitos, logo a seguir ao tempo. O desconhecido. O que ocupa os interstícios do tempo e do espaço (e do cosmos: a “matéria sombra” ou negra). Reino do indefinido, de secretos desígnios, daquilo que se está a fazer, a construir longe do nosso olhar.
– O acumular do tempo sobre as coisas que amamos. O que nos corre nas veias.
Caminho – No sentido topográfico, e não enquanto metáfora da existência, do percurso do homem na terra. O caminho que serpenteia através das florestas, que trepa pelos montes e pelas encostas. Que desaparece, por vezes, por entre as árvores, ou sob a vegetação rasteira. Ou que gostamos que desapareça.
Folhas – No solo, estalando e crepitando sobre os nossos passos. Indecisas nos ramos das árvores. Encharcadas nas margens dos rios, coladas às pedras. A fermentar na manta morta. A rescender. Iluminadas por dentro, contra a luz do sol.
Insecto – Não é um ser deste mundo. É o encontro perfeito entre o reino animal, vegetal e mineral. Um hino à imaginação da natureza. Perfeito como uma jóia, ou como um relógio. Imagino sempre que os insetos são feitos de ínfimas engrenagens, rodas dentadas, minúsculos mecanismos de precisão. Elegante no vôo. Faúlha. O ruído que fazem os insetos é o latejar da própria natureza. Até nos sítios mais isolados e longínquos, lá está o inseto, atarefado. O mundo seria um lugar triste sem os insetos, embora a tendência seja para achar precisamente o contrário. O meu inseto favorito é o louva-a-deus do poema de Fiama Hasse Pais Brandão.
Ossos – São a face mineral dos seres vivos, a sua estrutura profunda, aquilo que se encontra depois de percorrer sucessivamente a pele, a carne e os órgãos, e, no entanto, podem doer quando chega o tempo húmido, ainda antes de nos apercebermos da sua chegada, como se possuíssem poderes sobrenaturais. É a última coisa que deixamos na terra, depois de desaparecermos, aquilo que de nós mais resiste e que lembra que existimos outrora.
Jornal das Letras, Artes e Idéias, Ano XXIV / n.889 (27 de outubro a 9 de novembro 2004), Portugal.

3 de dezembro de 2010

Otávio: o novo solteirão do Orkut

Hilda Armstrong (http://www.heurecaatelie.com.br/)
             Depois de um sólido casamento que durou 15 anos, Otávio sentia-se na flor da idade, às vésperas de completar 45 primaveras.
          Recusava o tratamento de “senhor”. Era contraditória a disposição para recomeçar a vida amorosa. Especialmente depois que conheceu o mundo encantado do Orkut.
          Ali, seu harém o tratava como um sheik. E sua idade não pesava em  novas conquistas.
          Toda noite trocava tórridos “depoimentos” cercados de cumplicidade e uma pseudo-privacidade que o mantinha protegido dos curiosos.
          Cada vez mais galanteador, em seu perfil multiplicavam-se pedidos de mulheres para serem adicionadas. Loiras, morenas, algumas transbordavam sensualidade. Todas eram lindas, pois as melhores fotos vão para o Orkut.
          Chegava a questionar a sobrevivência das prostitutas em tempos de internet. Por que alguém ainda pagaria por algo fácil e gratuitamente conquistado via redes sociais?
          Mensagens estilo emocional-brega chegavam em forma de “scraps”.  Algumas falavam de Jesus. Outras brilhavam e piscavam. Eram  portadoras de um singelo “Amo Você” ou “Lembrei de você hoje”.
          Serviam de chacota entre os colegas de trabalho, que xeretavam seu perfil diariamente. Mas garantiam companhia em jantares animados, que podiam ter como cenário uma famosa rede de fast food ou um requintado restaurante. Tudo dependeria da faixa etária da convidada.
          Para alavancar ainda mais seu ibope virtual precisava dominar as novidades daquela rede social. Sob a orientação de amigos experientes, foi estimulado a desenvolver um papo mais jovial:
          - Cara, pergunta como vai a “colheita feliz” dela.
          Mesmo desconhecendo o assunto, tascou a pergunta num “scrap”. E dali se desenvolveu um longo papo madrugada afora.
          Erros gramaticais escapavam vez por outra. Encontrou gente solitária e carente. Mas o que ele queria mesmo era farra.
          Inspirava-se a escrever cartas apaixonadas e poemas de amor e sexo. Tudo virava papel picado ao amanhecer. Não podia correr o risco de envolvimento sério.
          Entusiasmado migrou rumo a novas ferramentas de socialização. Arriscou sua pele, conversando ao mesmo tempo, com seis mulheres, pelo MSN. Começou a embolar a conversa. Enviar mensagem destinada para uma, à outra. E mulher, mesmo em momento de aventura não deixa barato esse tipo de “equívoco”. Parte para a aporrinhação.
          Diante do fato, restava desconectar. Voltava. Era hora de bloquear pessoas e evitar contratempos.
          Estava feliz com sua nova vida de solteiro. Sexo furtivo e ocasional, com cama de casal inteirinha só pra ele. 
***
Alberto Montt_Facebook (http://www.dosisdiarias.com/)

Vocabulário de afetos IV

A graça das meninas
Velasquez_As meninas
Mário de Carvalho (escritor)
Hoje, as dez escolhidas calham a ser, por ordem de relembrança, e com considerandos, as seguintes: 
Menina – Valéry Larbaud impressionou-se com a palavra entre outras. Opiniões de escriba diletante, aliás estimável, que sabia tanto de Português, que aprendeu, como eu de lagares de azeite, que não aprendi. Não é uma das mais mais, é a mais! Não foi por acaso que Velasquez escolheu As Meninas para título do quadro, tão profusamente picassiado. Traduz doce ternura, uma vênia faceta, uma sugestão de contida brincadeira e alegria, um respeito pela graça ainda frágil. Doces consoantes que murmuram, um “i” que salta e ri.
Meiga – Vem de mágico e não lhe está longe. O oposto espreita, irmanado em megera, galego, “meigueira”. Venham bruxas, feiticeiras, meigueiras, mas não antes de eu contar as areias do mar. Tudo me seja perdoado em meigueira.
Delir – Evola-se nos ares, funde-se nas cores, morre manso. Há muitos vocábulos para o efeito, mas este parece-me o mais elegante e fatal.
Mesura – O sentido da medida, a recusa dos extremos. Prefiro-a na acepção arcaica e não na que sobrou de rapapés e vênias. Seja mesura atitude de prudência, deferência, cautela e discrição. Assim devera eu ser, se não fora não poder.
Brando - ... e piadoso, o mover dos olhos. Os quais me matam.
Mirto – que antigamente se escrevia “myrtho”. Uma vez mostraram-mos num lugar de frutas e flores, ao lado dos diospiros e das sardinheiras. Não, o myrtho verdadeiro não era aquele. Atapetava as florestas umbrosas que nunca existiram na Grécia. De par com as boninas, misteriosas e rimáveis.
Pairar – vem, da linguagem náutica, como uma parte muito apreciável, e insuspeitada, do nosso vocabulário corrente. O “pairo”, “ferrado todo o pano, etc”. prefiro pensar na águia ou no milhano, em silentes círculos de ameaça, de “pólo em pólo” como diz a velha canção. A gaivota também bem paira, mas é outra coisa.
Saudade – porque não, a saudade? Já milhões de mariconços e obscurantistas iluminados, de século em século, tentaram gastar o conceito e pindericar de vez a palavra. E também adejaram os místicos, com os seus mantos de bolor, forrados a lantejoulas de escamas de pescada. Sobrevivendo-lhes, eu te saúdo, saudade.
Formosa – fermosa era outra coisa. Ou fremosa, fremisnha, se bem ajades... Sedia la fremosa seu sirgo trocendo, as voz manselinha fremoso dizendo ... “manselinha” também era boa palavra para as dez mais.
Velida – Arcaísmo, pois, magnífico. Bailemos agora todas três, ai. Por cada dez neologismos devia ser obrigatório repor um arcaísmo. Eu proponho este.
Jornal das Letras, Artes e Idéias, Ano XXIV / n.889 (27 de outubro a 9 de novembro 2004), Portugal. 

26 de novembro de 2010

Vocabulário de afetos III

Em louvor da vírgula
José Mário Silva (jornalista e poeta)
Macadame – É tudo uma questão de ritmo. Digam comigo, muito rápido: “macadame, macadame, macadame”. Não imaginam logo o som de um motor a quatro tempos, numa estrada cheia de curvas? Ou então uma reta interminável onde automóveis (dos primeiros, a manivela) se cruzam com caleches repletas de burgueses aperaltados? Macadame é uma palavra deliciosamente antiga, espécie de asfalto oitocentista, vocabulário dandy para personagem do Eça.
Zigurate – A culpa é da letra “z”, dos zigezagues com que faz entrar, cego pelo sol, na arquitetura desses templos anteriores à própria Bíblia, talvez o de Ur, talvez essa maldita e fascinante Torre de Babel.
Falésia - Quatro sílabas que primeiro se põem a correm (“fa”), depois planam momentaneamente sobre o abismo (“lé”), antes de caírem desamparadas (“si”) no mar que fica lá em baixo (“a”). A palavra espelha o que é suposto representar: paisagem e perspectiva. Não se lhe pode pedir mais.
Magnólia _ Digo “magnólia” e explode na minha boca uma flor branca, presa à memória de versos magníficos (Luíza Neto Jorge, Daniel Faria).
Tiorba – Vocabulário primo de um outro – alaúde – e igualmente belo, lânguido, musical.
Ascese – Pesa o mínimo dos mínimos, este substantivo quase sem substância. É pura leveza, palavra feita de ar, caminho aberto para os pensamentos mais altos e distantes da pequenez terrestre. Pronunciá-las (as-ce-se) é já um começo de levitação.
Láudano – O torpor sobe de intervalo entre as letras (e é bom).
Revelim – É uma espécie de escudo, de proteção para muralhas e obras de arte. Palavra rara, vagamente ridícula, tão pomposa que dá vontade de rir. Gosto dela por isso mesmo: há algo na sua solenidade anacrônica que me enternece.
Pérgula – De imediato: um terraço coberto, a primavera crescendo nas sombras. E a palavra enrola-se, é portátil, cabe no bolso. Além disso, faz-me lembrar uma pausa serena, a vírgula que é muito mais do que um sinal de pontuação. Na pérgula, sinto-me perto da vírgula.
Ecografia – A razão porque escolho esta palavra é tão óbvia como íntima. Sim, é mesmo essa. Mede-se (ainda) em milímetros.
Jornal das Letras, Artes e Idéias, Ano XXIV / n.889 (27 de outubro a 9 de novembro 2004), Portugal.
http://bibliotecariodebabel.com/

20 de novembro de 2010

Vocabulário de afetos II

Música e ritmo
Catarina Fonseca (jornalista e escritora)
Traquitana – Serve para basicamente tudo à face da Terra. Geralmente é uma coisa em grande que não se domina. Ai que mal que isto soou. Tipo máquina de lavar louça. Um batom, por exemplo, não é uma traquitana.
Chafarica – É aquelas palavras que só podem existir na língua portuguesa (embora depois vamos a ver e elas vêm todas do francês ou do galego ou do árabe) como calduço, e lamisgóia, e badameco, e patanisca.
Traulitada – Também poderia estar na categoria anterior, mas merece uma alínea só para ela. Parece uma dança. ‘Os trauliteiros de Miranda’.
Madrigal – É das poucas palavras que são foneticamente musicais e têm um significado a corresponder. Estranhamente, isso faz com que não dêem jeito nenhum. São demasiado-uni-qualquer-coisa. Não se pode usá-las, só pode abusá-las. São as louras burras do vocabulário.
Escaldadiço – Gosto muito do sufixo “iço”. Como em enfermiço. Gosto muito de palavras intraduzíveis.
Berbequim – Não merece aquilo que é. Como edil. E crinolina. E filial. E criminalidade. Para que foram gastar música com significados destes? Devia ser tudo expropriado e botado noutro significado, tipo a terra a quem a trabalha. Por exemplo, berbequim podia substituir “olho”, que tem tão pouca graça que até dói. ‘Tens uns lindos berbequins’ ou, teus berbequins castanhos de encantos tamanhos.
Lacaio – Faz parte da categoria ‘palavras que são exactamente aquilo que são’. Como pacato, maléfico, moinha, alguidar, farfalheira, bodega.
Crancelim – Parece um arreio de cavalos. “Mete aí um crancelim ao Pimpão.” Infelizmente, significa uma coroa de flores no meio de um escudo heráldico. São palavras que nunca se usam, o que é uma pena. Não seria lindo poder dizer de vez em quando, “passa-me aí o crancelim? Em vez de sei lá, piaçaba? “Já tens um crancelim na tua casa de banho?” Por outro lado, passava-se a diser-se: “meu brasão de família tem um piaçaba entre dois dragões.”
Breu – Gosto, pronto. É uma pena ser tão lugar-comum que já não se pode usá-la.
Pitencantropo – Isto sim, é uma palavra de jeito. Infelizmente, não há assim muita oportunidade para a usar.
Gosma – É transtornante a quantidade de magníficas palavras que a nossa língua usa para descrever substâncias vagamente nojentas. Além da imbatível gosma ainda há ranho, ranhoca, ranheta, escarreta, cuspo. E etc. Desvantagem: não é para todos os estômagos.
 Jornal das Letras, Artes e Idéias, Ano XXIV / n.889 (27 de outubro a 9 de novembro 2004), Portugal.
Berbequim.pt=Furadeira.br

19 de novembro de 2010

Vocabulário de afetos I

A sedução das esdrúxulas
Albano Martins (poeta)
Paixão – A palavra significa sofrimento, mas o sofrimento por amor é o único humanamente tolerável e, mais do que isso, apetível. Diria mais: a paixão é a única forma digna de estar na vida e de resistir aos assaltos diários da morte.
Água – A da fonte e a dos riachos da montanha. Limpa, límpida, era assim que eu queria as relações humanas, habitualmente tão turvas e envenenadas.
Lágrima – Sempre me seduziram as palavras esdrúxulas. Esta, pela sua particular sonoridade, que lhe advém da contiguidade da vogal átona i, fechada, com a tônica a, aberta, e da acumulação de consoantes líquidas ou molhadas. Lágrima é, com efeito, uma palavra molhada. E salgada, como a água do mar.
Fogo – O elemento primordial, como queria Heráclito. Sem ele, Eros seria apenas um deus menor ou uma figura retórica.
Verão – A casa do fogo. É lá também que moram os frutos, as hidrângeas e as papoilas.
Perfume – É uma essência, e é a essência que a minha poesia persegue. Rima, além disso, com lume, que é o outro nome do fogo.
Vermelho – A primeira cor. Digo: a cor do fogo e do sangue. A cor do génesis, auroral.
Magnólia – A flor esdrúxula; a flor sem folhas e sem fruto; a flor, simplesmente.
Acaso – Tudo é obra sua. Ele é, por isso, o único deus ominipotente e... omnipresente.
Absurdo – O irmão gémeo do acaso, e tão poderoso e presente como ele no universo do nosso quotidiano.
Jornal das Letras, Artes e Idéias, Ano XXIV / n.889 (27 de outubro a 9 de novembro 2004), Portugal.
O livro comemora os 60 anos de carreira do escritor.

Procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Carlos Drummond de Andrade em "A Rosa do Povo" (1945)
***

16 de novembro de 2010

8 x 80

JMGLA
Parece que foi ontem. A expressão é bem usada. Eu menina em Petrópolis declamando Meus Oito Anos. Hoje prestes a completar oitenta. A estrada. Tento escrever um poema. Mal traçado. Nada me contenta.
Arlette Santos

Reescrita, traduções e releitura do Endimião de Keats

Passos em direção à beleza
Uma das meninas de Vélasquez (1665) e a releitura de Picasso (em torno de 1950)
 Leitura
O Endimião é um poema longo escrito de abril a 28 de novembro de 1817 e publicado em fins de abril de 1818. Cuida dos amores mitológicos de Febe (a Lua) e Endimião, em quatro livros cheios de incidentes.
Releitura
O tema, que consta de Ovídio, inspirou ao Cariteo, na Itália, em livro intitulado Endimione, no qual se dirigem poemas platônicos a "Luna". O assunto, na Inglaterra, foi desenvolvido por Lyly (Endimion), também platonicamente, ou por Drayton (Endymion and Phoebe), com uma história mínima, cheia de uma sucessão de cenas agradáveis interrompidas por meditações ou dissertações casuais sobre Astronomia, Astrologia, Filosofia. Admite-se que Keats haja conhecido essas e outras fontes insulares, que foram profusas (vide E.S. Le Comte, Endymion in England, Nova York, 1944).
 Escrita
O excerto abaixo abre o poema, com um verso celebérrimo, "A thing of beauty is a joy for ever", que Keats imaginou em 1815,
Escuta
ao tempo em que morava com outro estudante de medicina, Henry Stephens, o qual disse que à primeira versão da linha - "A thing of beauty is a constant joy" - faltava alguma coisa.
Reescrita 
Keats emendou então, tornando-se magistral o verso.
Péricles Eugenio da Silva Ramos
***
O poema (trecho)
Endymion
John Keats
A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.
Therefore, on every morrow, are we wreathing
A flowery band to bind us to the earth,
Spite of despondence, of the inhuman dearth
Of noble natures, of the gloomy days,
Of all the unhealthy and o'er-darkened ways::
Made for our searching: yes, in spite of all,
Some shape of beauty moves away the pall
From our dark spirits. Such the sun, the moon,
Trees old and young, sprouting a shady boon
For simple sheep; and such are daffodils
With the green world they live in; and clear rills
That for themselves a cooling covert make
'Gainst the hot season; the mid forest brake,
Rich with a sprinkling of fair musk-rose blooms:
And such too is the grandeur of the dooms
We have imagined for the mighty dead;
All lovely tales that we have heard or read:
An endless fountain of immortal drink,
Pouring unto us from the heaven's brink.
 ***
Traduções
1. Endimião
Tudo o que é belo é uma alegria para sempre:
O seu encanto cresce; não cairá no nada;
Mas guardará continuamente, para nós,
Um sossegado abrigo, e um sono todo cheio
De doces sonhos, de saúde e calmo alento.
Toda manhã, portanto, estamos nós tecendo
Um liame floral que nos vincule à terra,
Malgrado o desespero, a carestia cruel
De nobres naturezas, os escuros dias,
E todos os sombreados e malsãos caminhos
Abertos para nossa busca: não obstante,
Alguma forma bela afasta essa mortalha
De nossa lúgubre alma. Assim são sol e lua,
As árvores lançando a dádiva da sombra
Às ovelhas sem mal; e assim são os narcisos
Com o mundo verde no qual vivem, e os regatos
Que fazem para sim uma coberta amena
Contra a quente estação; a moita mato adentro,
Rica de um jorro em flor de almiscaradas rosas;
E assim também a majestade dos destinos
Que imaginamos para os mortos poderosos;
Os lindos contos que nós lemos ou ouvimos:
Uma fonte infindável de imortal bebida
Que da fímbria dos céus a nós se precipita.
Trad. Péricles Eugenio da Silva Ramos, 1987 - Premio Jabuti - 1986

2. Endymion
O que é belo há de ser eternamente
Uma alegria, e há de seguir presente.
Não morre; onde quer que a vida breve
Nos leve, há de nos dar um sono leve,
Cheio de sonhos e de calmo alento.
Assim, cabe tecer cada momento
Nessa grinalda que nos entretece
À terra, apesar da pouca messe
De nobres naturezas, das agruras,
Das nossas tristes aflições escuras,
Das duras dores. Sim, ainda que rara,
Alguma forma de beleza aclara
As névoas da alma. O sol e a lua estão
Luzindo e há sempre uma árvore onde vão
Sombrear-se as ovelhas; cravos, cachos
De uvas num mundo verde; riachos
Que refrescam, e o bálsamo da aragem
Que ameniza o calor; musgo, folhagem,
Campos, aromas, flores, grãos, sementes,
E a grandeza do fim que aos imponentes
Mortos pensamos recobrir de glória,
E os contos encantados na memória:
Fonte sem fim dessa imortal bebida
Que vem do céus e alenta a nossa vida.
Trad. Augusto de Campos, 2009
Colhido no http://antoniocicero.blogspot.com
***
Releitura
Beauty: A thing of
Haroldo de Campos
sentada no sam-
witch à hora do
almoço ergueu o braço
à altura dos cabelos um
pente louro alumbra à axila
promessa do outro
pente debruçada sobre a mesa
lápis e o caderno de notas
livros nausícaa em camiseta e/
mêmore no mármore do tempo
e se levanta e
sai
(Haroldo de Campos. In: A educação dos cinco sentidos, 1985)

14 de novembro de 2010

Contos concisos

Inspirando-se no menor conto do mundo, do guatemalteco Augusto Monterroso, como 37 letras: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá", José Castello propõe o seguinte exercício: "escrever um conto de no máximo 50 palavras (quatro ou cinco linhas).
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Exemplos:
Do segundo andar da lanchonete, viu sua ex-mulher atravessar a rua e dirigir-se, cambaleante, para os trilhos do trem.
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Jonas, o mendigo, olhou com desdém a calça que o porteiro lhe estendia. Sabia de quem eram. Jamais aceitaria vestir-se com a roupa de quem caíra tão baixo.
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“E ela quebrou o meu sofá!” Nem bem havia saído, todas gargalhavam, mãos sobre a boca, do  arrastar dos mais de cem quilos de Toinha. Era a vingança das cinco irmãs, mas o pai não mudaria de idéia: ele havia escolhido aquela como a sua noiva.
O padre queria rezar mas só se lembrava do Flamengo. Do Flamengo e daquela sua prima que havia feito de tudo para que ele afinal se tornasse rubro-negro.
Bia Albernaz
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JMGLA