30 de outubro de 2010

A casa de Asterion (reconto do Minotauro)

Jorge Luís Borges (retirado do livro O aleph, trad. Flávio José Cardozo)

E a rainha deu à luz um filho que se chamou Asterion.
Apolodoro: Biblioteca, III,I.
          Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio da casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito)* estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas femininas nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma parecida no Egito.) Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Asterion, seja um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não existe uma fechadura? Mesmo porque, num entardecer, pisei a rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. O sol já se tinha posto, mas o desvalido pranto de um menino e as preces rudes do povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, se prosternava: alguns se encarapitavam no estilóbato do Templo das Tochas, outros juntavam pedras. Algum deles, creio, se ocultou no mar. Não é em vão que uma rainha foi minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que o queira minha modéstia.
          O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço em meu espírito, capacitado para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.
          Claro que não me faltam distrações. Como o carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão, estonteado. Oculto-me à sombra duma cisterna ou à volta dum corredor e divirto-me com que me busquem. Há terraços donde me deixo cair, até ensanguentar-me. A qualquer hora posso fazer que estou dormindo, com os olhos cerrados e a respiração contida. (Às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de todos os brinquedos, o que prefiro é o do outro Asterion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes reverências, lhe digo: Agora voltamos à encruzilhada anterior ou Agora desembocamos em outro pátio ou Bem dizia eu que te agradaria o pequeno canal ou Agora vais ver como o porão se bifurca. Às vezes me engano e rimo-nos os dois, amavelmente.
          Não tenho pensado apenas nesses brinquedos: tenho também meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são quatorze (são infinitos) os pesebres, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, de tanto andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo das Tochas e o mar. Não entendi isso até uma visão noturna me revelar que também são quatorze (são infinitos) os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, quatorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: em cima, o intrincado sol; embaixo, Asterion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.
          Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para buscá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensanguente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde então a solidão me magoa, porque sei que meu redentor vive e por fim se levantará do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? – me pergunto. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?
          O sol da manhã rebrilhou na espada de bronze. Já não restava qualquer vestígio de sangue.
          -    Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro apenas se defendeu.
Para Marta Mosqueta Eastman
* O original diz quatorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Asterion, essa adjetivo numeral vale por infinitos.
Picasso - Minotauro ferido IV (1933)

28 de outubro de 2010

Que segredos tem Clarice?

Do livro "Espelho" de Susy Lee
          Solilóquio
          Escrevo como se estivesse dormindo e sonhando: as frases desconexas como no sonho. É difícil, estando acordado, sonhar livremente nos meus remotos mistérios. Há uma coerência – mas somente nas profundezas. Para quem está à tona e sem sonhar, as frases nada significam. Se bem que embora acordados alguns saibam que se vive em sonho na vida real. O que é a vida real? Os fatos? Não, a vida real só é atingida pelo que há de sonho na vida real.
          Sonhar não é ilusão. Mas é o ato que uma pessoa faz sozinha.
          Eu – eu quero quebrar os limites da raça humana e tornar-me livre a ponto de grito selvagem ou “divino” ... A vida real é um sonho, só que de olhos abertos (que vêem tudo distorcido). A vida real entra em nós em câmera lenta, inclusive o raciocínio o mais rigoroso – é sonho. A consciência só me serve para eu saber que vivi às apalpadelas e na ilogicidade (apenas aparente) do sonho. O sonho dos acordados é matéria real. Nós somos tão ilógicos sonhadores que contamos com o futuro. Eu baseio minha vida no sonho-acordado ... Mas nos sonhos acordados há uma ligeireza inconseqüente de riacho borbulhante e coerente. O estado de ser. (Um Sopro de vida)

          Fluxo de consciência
          As uvas, um cacho de uvas redondas e polpudas e líquidas e falsamente transparentes porque dão a impressão de serem transparentes, mas não se vê o lado de lá tu és inteiramente opaco embora dês a impressão de transparência diabo pro inferno que tenho a ver com a opacidade das coisas e a tua o touro da fazenda é grosso as vacas cheirando a campos inéditos o campo fica ao ar livre entre o campo e o céu eu respiro o ar que voa voa leve quando começa a brisar meu rosto nu e desgovernado louco quando as janelas batem e batem as ventanias gosto tanto de ser brisada como de me expor à ventania que bate as portas e janelas do casarão inteiro. (Um Sopro de vida)

          Busca do grau zero da linguagem
          Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. E então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto, ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso.
          Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros quiseram ter o que já tinham. (...) Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem distraídos. (“Fundo de gaveta”, em Legião Estrangeira)

          Repetição
          Pois ele sabia que eu não saberia ver o que visse: a explicação de um enigma é a repetição de um enigma. O que és? e a resposta é: És.  O que existes? e a resposta é: o que existes. Eu tinha a capacidade de pergunta mas não a de ouvir a resposta. (Paixão segundo GH)

          Elementos metafóricos contundentes
          Pega uma espiga delgada de trigo de ouro, e põe entre as gengivas sem dentes e se afasta de gatinhas com os olhos abertos. Olhos imóveis como o nariz. É preciso mover toda a cabeça sem ossos para fitar um objeto. Mas que objeto? (Água viva)

          Oxímoros (uma variante da antítese, resultado de uma contradição entre termos próximos) desajustados
          Juro, acredita em mim – a sala de visitas estava escura – mas a música chamou para o centro o centro da sala – a sala se escureceu toda dentro da escuridão – eu estava nas trevas – senti que por mais escura a sala era clara – agasalhei-me no medo – como já me agasalhei de ti em ti mesmo – que foi que encontrei? – nada senão que a sala escura enchia-se da claridade que se adivinha no mais escuro – e que eu tremia no centro dessa difícil luz – acredita em mim embora eu não possa explicar – houve alguma coisa perfeita e graciosa – como se eu nunca tivesse visto uma flor – ou como se eu fosse a flor – e houvesse uma abelha – uma abelha gelada de pavor – diante da irrespirável graça dessa luz das trevas que é uma flor – e a flor estava gelada de pavor diante da abelha que era muito doce – acredita em mim que também não creio – que também não sei o que poderia uma abelha viva de pavor querer na escura vida de uma flor – mas crê em mim – a sala estava cheia de um sorriso penetrante – um rito fatal se cumpria – e o que se chama de pavor não é pavor – é a brancura subindo das trevas – não ficou nenhuma prova – nada te posso garantir – eu sou a única prova de mim. (“Fundo de gaveta” – LE)

          Símiles conectados em estranhamento
          A morte é um encontro consigo. Deitada, a morta era tão grande como um cavalo morto. (A hora da estrela)

          Letra desarticuladora de si e do outro
          Eu escrevo por intermédio de palavras que ocultam outras – as verdadeiras. É que as verdadeiras não podem ser denominadas. Mesmo que eu não saiba quais são as “verdadeiras palavras”, eu estou sempre aludindo a elas. (Um sopro de vida)

          Palavra: encontro do ato e vivenciamento desse ato
          De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.
          Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo... – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo... – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. (LE)
Confira ROSSONI, Igor. Zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector: uma literatura de vida e como vida. SP: UNESP, 2002 ou no site: http://cultvox.uol.com.br/ListaLivros.asp?IDCategoria=56&Tipo=Categoria

25 de outubro de 2010

Sobre a arte de escrever e ler: alguma bibliografia

ANDRADE, Mario de, e SABINO, Fernando. Cartas a um jovem escritor. Editora Record, 1993.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Perspectiva, 2006.
BOILEAU-NARCEJAC. O romance policial. Ática, 1991 (Fundamentos).
BORGES, Antonio Fernando. Não perca a prosa – o pequeno guia da grande arte da escrita. Versal, 2003.
BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. Companhia das Letras, 2000.
BRAIT, Beth. A personagem. Ática, 1986 (série Princípios).
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, 1990.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Cultrix/Pensamento, 1995.
CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. Perspectiva, 1970.
_______ (org.). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Editora da Unicamp, 1992.
COMPARATO, Doc. Da criação do roteiro. Rocco, 2000.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. Perspectiva,1974.
CROWE, Rizzoli. How I write – the secret lives of authors
CUNHA, Celso. Nova gramática do português contemporâneo. Nova Fronteira, 1985.
DOURADO, Autran. Uma poética de romance. Matéria de Carpintaria. Rocco, 2000.
FERRARI, Maria Helena e MUNIZ SODRÉ. Técnica de redação – o texto nos meios de informação. Francisco Alves, 1978.
FERRARI, Osvaldo. Borges em diálogo - conversas, Rocco, 1986.
FIELD, Syd. Quatro roteiros. Objetiva, 1994.
______. Manual do roteiro. Objetiva, 1995.
FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do romance. Globo, 1998.
GARCIA, Othon Moacyr. Comunicação em prosa moderna. FGV, 1997.
GARDNER, John. A arte da ficção - orientação para futuros escritores. Civilização Brasileira, 1997.
GIARDINELLI, Mempo. Assim se escreve um conto.  Mercado Aberto, 1994.
GOLDBERG, Natalie. Mente selvagem. Como se tornar um escritor. Gryphus, 1994.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. Ática, 1987 (série Princípios).
GORKI, Máximo. Como aprendi a escrever. Mercado Aberto, 1994.    
GOTLIB, Nadia Batella. Teoria do conto. Ática, 2006 (série Princípios).
JOLLES, André. Formas simples. Cultrix, 1976.
KOTHE, Flávio. O herói. Ática, 1985 (série Princípios).
______. A narrativa trivial. Editora da Universidade de Brasília, 1994.
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Companhia das Letras, 1997.
______. Os livros e os dias – um ano de leitura prazerosas. Companhia das Letras, 2005.
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Como contar um conto. Casa Jorge Editorial, 1997.
MARTINS FILHO, Eduardo Lopes. Manual de redação e estilo O Estado de São Paulo. Maltese, 1992.
MAIAKÓVSKY. Poética – como fazer versos. Global, 1977.
MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. Ática, 2006 (série Princípios).
MONTERO, Rosa. A louca da casa. Ediouro, 2004.
PAIXÃO, Floriceno. Entrevistas do Le Monde. Ática, 1990.
PAES, José Paulo. A aventura literária: Ensaios sobre ficção e ficções. Companhia das Letras, 1990.
PERISSÉ, Gabriel. Ler, pensar e escrever. Arte & Ciência, 1998.
PIGLIA, Ricardo. O Laboratório do Escritor. Iluminuras, 1994.
POUND, Ezra. ABC da literatura. Cultrix, 1977.
PREGO, Omar. O fascínio das palavras. Entrevistas com Julio Cortázar. José Olympio, 1991.
PROPP, Vladimir Iakovlevitch. Morfologia do Conto Maravilhoso. Forense Universitária, 2006.
PROSE, Francine. Para ler como um escritor. Zahar, 2008.
REY, Marcos. O roteirista profissional. Ática, 1997.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Globo, 1995.
SÁ, Jorge de. A crônica. Ática, 2005 (série Princípios)
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Tempo Brasileiro, 1975.
STORTINI, Carlos. Dicionário de Borges. Bertrand, 1986.
SENNA, Homero. República das letras. Entrevista com 20 grandes escritores brasileiros. Civilização Brasileira, 1996.
SERAFINI, Maria Teresa. Como escrever textos. Globo, 2001.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor. Ampersand, 1997.

E ainda:
- On fiction - Stephen King
- Cartas a um jovem escritor - Mario Vargas Llosa
- Breve manual de estilo e romance - Autran Dourado
- Guia prático para a criatividade - Julia Cameron
- Becoming a writer - Dorothea Brande
- Os segredos da ficção - Raimundo Carrero
- A oficina do escritor: sobre ler, escrever e publicar – Nelson de Oliveira

21 de outubro de 2010

O amante da literatura (convite)

O grande teste do escritor é a teimosia.

Nelson de Oliveira (extraído de "A oficina do escritor - sobre ler, escrever e publicar")
Por isso eu recomendo que você:
1. Organize um grupo de estudos.
2. Organize saraus.
3. Crie um site literário.
4. Publique uma revista.
5. Edite você mesmo o seu livro.
6. Funde uma microeditora.
7. Contrate um agente literário.
8. Participe da vida social literária.
9. Participe de todos os concursos literários.
10. Conquiste a simpatia de um escritor veterano.
          Toda essa movimentação exporá você e sua literatura a um número cada vez maior de leitores. Devagar, passo a passo, você irá conquistar o seu próprio público, pequeno mas fiel.
          E os olheiros das editoras estão sempre atentos aos autores que já têm seu pequeno público.
          Deixe a modéstia e o pudor cristão de lado.
          Não há vergonha alguma, por exemplo, na auto-edição. Alguns dos grandes nomes da prosa e da poesia brasileiras - Bandeira, Clarice, João Cabral, os poetas concretos, entre outros - pagaram a edição dos seus primeiros livros. Muitos deles, graças ao talento e à sorte, em pouco tempo passaram da auto-edição para uma grande editora.
          O fundamental é que o livro auto-editado tenha a mesma qualidade gráfica e editorial que os livros das editoras consagradas. A tiragem pode ser pequena: cem, duzentos ou trezentos exemplares. O fundamental é que o livro auto-editado tenha uma boa preparação de texto, uma boa revisão, um bom papel, uma boa capa, um design eficiente, uma boa impressão e um bom acabamento.
          Com a informatização do setor gráfico e o consequente barateamento do processo de impressão e acabamento, uma quantidade considerável de pequenas editoras foi surgindo a partir da virada do século. Algumas delas fundada por escritores em busca de um canal para a sua produção e a de seus colegas.
          A contratação de um agente não costuma ser barata. Mas não resta dúvida de que o agenciamento literário, procedimento largamente adotado nos países de sólido mercado editorial, está se tornando comum também no Brasil. Entre outras benfeitorias, esse profissional tem ajudado a organizar o desordenado vaivém de originais e diletantes frustrados. 
          Sim, continue enviando e-amils aos autores que você admira. Convide-os ao diálogo, troque figurinhas com eles.
          Mas, veja bem, eu disse aos autores que você admira.
          É preciso que haja uma afinidade literária entre vocês. Afinidade temática, estilística, existencial.
          Não faz o menor sentido ficar pedindo ajuda aos escritores que você mal conhece, cujos livros nunca despertaram em você o menor interesse.
          Além de ser um procedimento pouco ético, isso não funciona, é perda de tempo.

18 de outubro de 2010

Isto

Uma vez Antonio Fraga me disse que o escritor não precisa sentir nada quando escreve.
Precisa despertar no leitor o sentimento.
Acabo de ler o seguinte poema de Fernando Pessoa. Eles concordam.

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Fernando Pessoa

15 de outubro de 2010

Oficio de viver (21 de fevereiro)

Meus contos são - enquanto resultado - histórias de um contemplador que observa coisas maiores do que ele acontecerem. Cesare Pavese

14 de outubro de 2010

Objetos Insones

Alex Cerqueira
“Ave Maria”
Mais uma madrugada virando-virando. Esquerda, cara pra esta parede que a escuridão não esconde a brancura. A imagem da pequena caixa de papel com a tarja preta me persegue; pressão do travesseiro sobre o dente recém tratado no canal, bloco, coroa: quase-dor; braço sob o corpo, peso, circulação insuficiente, incômodo: quase formigamento; perna direita sobre a esquerda, calor, coxa agasalhando a coxa: quase suor; osso do tornozelo direito sobre a canela esquerda, agudo, atrapalhando: quase fere.

“Cheia de graça”
E viro para a direita, de frente para a estante. Livros vivos, lombadas coloridas, títulos presentes, autores imortais: quase gritam; garrafas insistem em relembrar sabores; as luzinhas, vermelha e verde, do filtro de linha e do monitor do computador brincam de amigo-inimigo, amigo-inimigo, piscando, acordadas. Malditos objetos insones.

“O Senhor é convosco”
Rezo. Sem concentração, sem pensar na mensagem ou conteúdo da oração. Não é uma reza, é uma repetição vazia, um movimento desesperado de esvaziar a mente, anular os pensamentos, livrar-me da vigília. A imagem da pequena caixa de papel com a tarja preta me persegue. Na pseudo-oração, uma tentativa de fuga da insônia, um jeito de não pensar na vida, na noite, na vida, na madrugada, na vida, no trabalho, na vida, na família, na vida, na doença, no não-dormir, na morte. Mais acordado que nunca.

“Bendita sois Vós entre as mulheres“
O travesseiro é baixo, alta é a necessidade de eliminar os demônios disfarçados da insônia. Toda a frágil esperança de não levantar-me esvai-se.  Levanto. Pego outro travesseiro, junto, apalpo, amacio. Deito. O lençol é quente. Levanto. Pego outro, troco, desdobro, sacudo, estico. Estico, sacudo, dobro e guardo o anterior. Deito.

“Bendito é o fruto do Vosso ventre, Jesus”
Volto a virar-virar: esquerda, parede branca, tratamento de canal, braço embaixo, calor na perna, osso do tornozelo; direita, estante, livros, garrafas, pontos de luz piscando.

“Santa Maria”
O travesseiro ficou muito alto. O lençol deixa sentir frio. Levanto. Devolvo um travesseiro, apalpo e amacio o que fica, busco o lençol antigo, desdobro, sacudo, estico. Deito. Será que fechei a torneira do gás? Toda noite de insônia vem essa dúvida. Levanto. A imagem da pequena caixa de papel com a tarja preta me persegue.

“Mãe de Deus”
Torneira do gás fechada. Como todas as noites que levantei para verificar, por todos esses anos, sempre estava fechada. Aproveito e vejo se a geladeira está fechada. Está. Confiro se a torneira do banheiro está pingando. Não. Confirmo se liguei a secretária eletrônica. Liguei. Pus o telefone celular para carregar? Sim.

“Rogai por nós pecadores...”
Vencido, abro a caixinha de remédios.

“Agora e na hora da nossa morte”
 Quase desistindo, agora me viro, primeiro para a direita. A luzinha verde do monitor até que é simpática. Livros e garrafas já não incomodam tanto. Demoro-me mais a virar para a esquerda. Rosto na direção da parede branca, nem tão branca, nem tão próxima. A pressão do travesseiro sobre o dente tratado é mais suave. Não me lembro do próprio corpo. Tento rezar.

”Amém”.
www.sanlamuerte.net/

10 de outubro de 2010

Língua* & Línguas

ParkeHarrison_Pollenation
Língua
Sei que é criadora de palavras. Palavras que minam verdades.
De verdades eu sei.
Sei que é fazedora de belas-artes. Artes que desvelam sentimentos.
De sentimentos eu sei.
Sei que é compositora de sons. Sons avivam as almas.
De almas eu sei.
Mas de língua culta, também não sei.
Pilar Carvalho
* Interlocução feita a partir do poema "Línguas" de Manoel de Barros sobre a linguagem e coisas assim.

***
Línguas
Contenho a vocação pra não saber línguas cultas.
Sou capaz de entender mais as abelhas do que alemão.
Eu domino os instintos primitivos.

A única língua que estudei com força foi a portuguesa.
Estudei-a com força para poder errá-la ao dente.

A língua dos ìndios Guatós é murmura: é como se ao
dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras.

A língua dos Guaranis é gárrula: para eles é muito
mais importante o rumor da palavras do que o sentido
que elas tenham.
Usam trinados até na dor.

Na língua dos Guanás há sempre uma sombra do
charco em que vivem.
Mas é língua matinal.
Há nos seus termos réstias de um sol infantil.

Entendo ainda o idioma inconversável das pedras.
É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das palavras.

Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar.
Manoel de Barros
ParkeHarrison_FlyingLesson

8 de outubro de 2010

Ofício de viver (29 de abril)

Cesare Pavese
Observei que no outono de 1938 encontrei um estilo e um filão de pensamentos centrípetos. Observei também que pela primeira vez na vida dou a mim mesmo conselhos de comportamento, ou seja, teoricamente determinei minha vontade. E logo consegui escrever um romance, que é a experiência desse comportamento.

Uma boa sugestão seria modificar o passado pessoal.

7 de outubro de 2010

As curiosas regras que os escritores ditam

Elmore Leonard (trad. Maria Inez Pumar). Retirado do "The Guardian" - guardian.co.uk
1 Nunca inicie o livro com um texto sobre o clima. Se a intenção for somente criar uma atmosfera, e não a reação de um personagem diante do clima, não se prolongue. O leitor pode ficar propenso a “pular páginas” à procura de pessoas. Há exceções. Se por acaso você for Barry Lopez, que consegue descrever o gelo e a neve em mais maneiras do que um esquimó em seu livro Arctic Dreams, você pode falar do tempo o quanto quiser.

2. Evite prólogos: eles podem ser aborrecidos, especialmente se depois de uma introdução que sucede a um prefácio. Mas esses são encontrados de ordinário em não-ficção. Um prólogo em um romance é a história por trás da história, que você pode pular se quiser. Há um prólogo em Sweet Thursday de John Steinbeck, mas tudo bem porque um personagem no livro confirma aquilo a que as minhas regras se referem. Ele diz: - Gosto muito de diálogos em livros e não gosto que me digam qual a aparência do cara que está falando. Quero imaginar como ele aparenta a partir do modo como fala.

3. Nunca use um verbo que não seja "disse" para encaminhar um diálogo. A fala de um diálogo pertence ao personagem; o verbo é o escritor enfiando seu nariz. Mas "disse" é de longe menos intrusivo do que "resmungou", "arfou", "preveniu", "mentiu". Uma vez notei que Mary McCarthy terminava a fala de um diálogo com "ela asseverou", me forçando a parar de ler e buscar ajuda no dicionário.

4. Nunca use um advérbio para modificar o verbo "dizer"... ele admoestou gravemente. Usar um advérbio desta maneira (ou quase de qualquer maneira) é um pecado mortal. O escritor estará assim se expondo intensamente, usando uma palavra que distrai e pode interromper o ritmo do papo. Em um dos meus livros, há uma personagem que conta como escreve romances históricos "cheios de estupros e advérbios". 


5. Mantenha seus pontos de exclamação sob controle. Você tem permissão para usar no máximo dois ou três por 100.000 palavras de prosa. Se tiver a capacidade para brincar com pontos de exclamação como o faz Tom Wolfe, você pode espalhá-los aos montes.

6. Nunca use as palavras "de repente" ou "o mundo veio abaixo" ["all hell broke loose"]. Esta regra não requer explicações. Percebi que escritores que usam "de repente" [ou "subitamente"] tendem a exercer menos controle em relação aos pontos de exclamação.


7. Use dialetos regionais, "patois", com moderação. Uma vez que começar a soletrar as palavras foneticamente nos diálogos e a encher a página com aspas, você não vai conseguir mais parar. Observe o modo como Annie Proulx captura o sabor da linguagem do Wyoming em seu livro de contos Close Range.


8. Evite descrições detalhadas dos personagens, assunto que Steinbeck abordou por completo. Em Hills Like White Elephants de Hemingway, como o “americano e a garota se pareciam”? ”Ela tirou seu chapéu e o colocou sobre a mesa". É a única referência a uma descrição física em toda a história".


9. Não entre em muitos detalhes na descrição de lugares e coisas. A menos que você seja Margaret Atwood e possa pintar cenas com a linguagem. Você não vai querer que descrições levem a ação, o fluxo da história a parecerem uma fotografia.


10. Tente deixar de fora as partes que o leitor tenda a saltar. Pense nas passagens que você saltou ao ler um romance: você consegue perceber que parágrafos pesados de prosa contêm palavras demais.


Minha regra mais importante é aquela que totaliza as 10: se soa como uma composição, eu reescrevo.
Elmore Leonard, escritor de pulp fiction, western e policiais.
Editado pela Harper Collins Publishers
Filme adaptado do romance "Rum Punch", de Elmore Leonard

4 de outubro de 2010

A escola de redação E.U.A - parte final

Elizabeth Bishop "Esforços do afeto", trad. Paulo Henriques Brito
          Muitos de meus patéticos candidatos davam a impressão de jamais ter lido o que quer que fosse, com a possível exceção de um único relato memorável, do gênero "Confissões verídicas". A discrepância que havia entre os textos estranhos, sem vida, desconjuntados que me enviavam e as coisas que liam em letra de fôrma simplesmente não lhes saltava à vista. Ou talvez eles imaginassem que o senhor Margolies brandiria sua vara de condão, e então os pequenos montes de melancólicos ossos verbais, como ossos de galinha ou espinhas de peixe, ganhariam carne e vida, e se transformariam em contos e romances encorpados, emocionantes, apaixonantes. Sem dúvida, haveria outros motivos, mais profundos, que os levavam a matricular-se no "curso", enviar suas "lições" e pagar a quantia absurda de quarenta dólares. Mas nunca consegui me convencer de que meus alunos realmente acreditavam que um dia iriam saber escrever, ou que teriam de se esforçar muito para conseguir tal coisa. Era como comprar um bilhete de loteria. Afinal, qualquer um poderia ganhar o prêmio, e todo mundo sabe que nessas coisas sempre tem marmelada.
          Todos esses exemplos de literatura "primitiva" - o temo me parece apropriado - tinham uma característica em comum que os diferenciava da pintura primitiva: o desmazelo e a afobação. Enquanto o pintor primitivo é capaz de passar meses ou anos, se necessário, reproduzindo todas as folhas de relva de um gramado ou criando muros de tijolo em baixo-relevo, o escritor primitivo parece ter pressas em acabar logo com aquilo. Outra característica era a ausência quase completa de detalhes. O pintor primitivo ama os detalhes, e os elabora e enfatiza em detrimento do todo. Mas quando o escritor primitivo utiliza detalhes, estes são muitas vezes absurdamente inadequados, e revelam muita coisa a respeito do autor sem dizer nada de relevante sobre o assunto em questão. Talvez isso prove que têm razão os escritores profissionais que com que freqüência se queixam de que pintar é mais divertido que escrever. Talvez as mesmas mulheres que apresentam míseros resumos de narrativas sem diálogos e sem nenhuma descrição de personagens e lugares não hesitassem em passar uma tarde inteira enfeitando um bolo de aniversário com glacê de cores diferentes. Mas a temática era igualmente banal nas pinturas e nos textos. Havia também nessa literatura a mesma tendência que há na pintura primitiva de fazer com que tudo faça sentido, ou adquira um valor moral para o mundo, atribuindo-lhe uma "moral" ou interpretação alegórica grandiosa, ainda que desajeitada. Era como se meus alunos dissessem: "Nossas experiências são verídicas e verdadeiras, e foi com base nelas que tiramos nossas conclusões inimitáveis e nobres. Como nossos sentimentos são tão elevados, quem ousaria negar-nos nosso direito à Fama?"
          O que poderia eu dizer a eles? A julgar pelo que me escreviam, estava claro que meus alunos mal podiam esperar a chegada de minha próxima análise. Talvez nutrissem a esperança, a cada vez, de que o senhor Margolies lhes dissesse que havia encontrado uma revista que publicaria sua lição e que o cheque seguia em anexo. Todos estavam ansiosos, embora não fizessem muito esforço; ou pelo menos achavam-se na obrigação de fingir-se ansiosos. Um homem escreveu: "Esta noite mal dormi, aguardando a sua resposta". Pediam desculpas pela demora, pela má ortografia, pelas canetas ou lápis que usavam (pedíamos que escrevessem a tinta, mas muitos não o faziam). Um rapaz desculpou-se pela letra feia, dizendo: "Estou escrevendo isto no metrô", o que talvez fosse verdade. Alguns se referiam a suas lições como "dever de casa", e dirigiam-se ao senhor Margolies como "querido professor". Uma mulher enfeitava suas lições com selos de Natal. Para minha surpresa, houve dois ou três alunos que escreveram obscenidades do tipo que um homem conta a outro, ou relataram piadas cabeludas velhíssimas.
          Comecei a copiar trechos das cartas e contos que enviavam e levá-los para casa. Um zelador de Kansas City queria aprender a escrever para publicar "um livro sobre como ensinar as crianças a serem bons radicais, do tipo de George Washington ou do tipo Jesus Cristo". Uma mulher contou-me que sua mãe idosa de tal modo aprovara seu propósito de aprender a escrever que lhe dera os quarenta dólares e lhe cedera "o nome dela para eu assinar trabalhos". A filha chamava-se Emma, a mãe Katerina. Eu poderia, por favor, doravante dirigir-me à filha como Katerina?
          Depois da minha "criadora de gado e galinhas", meu favorito era Jimmy O'Shea, de Fall River; idade: setenta anos; profissão: "aposentado". O estilo dele era o que mais se aproximava do primitivo clássico. Suas histórias eram um tanto compridas, e tal como Gertrude Stein ele escrevia à mão, com uma letra esparramada, em pedaços pequenos de papel. Havia elaborado um estilo que lhe permitia preencher exatamente uma página com cada frase. Cada frase - normalmente iniciada por Também ou Sim - começava no alto da página à esquerda  e terminava com um ponto avantajado no canto inferior à direita. A bondade brilhava por trás dessas páginas com pauta azul, como se elas fossem lanternas de papel. Ele caracterizava tudo que aparecia suas narrativas simples com três, quatro, até cinco adjetivos, e depois os repetia, como Homero, cada vez que o substantivo reaparecia. Foi o senhor O'Shea que me escreveu uma carta que exprimiu o sentimento comum de que o tempo está passando e sendo desperdiçado, deslumbramento e inveja, e em parte ambição sincera: 
          Eu não andava muito bem dos dentes, e tive que arrancar três dos grandes, porque eles me  faziam ficar nervoso e doente às vezes, e foi por isso que eu não mandei nenhuma lição. Estou pensando em saber escrever igual a todos os Escritores, porque acho que isso é o que pretendo mais que qualquer outro tipo de trabalho. Senhor Margolies, fico pensando como esses Escritores escrevem histórias grandes com 60 000 ou 100 000 palavras nessas Revistas, onde é que eles encontram imaginação e material para isso? Sei que ha um grande campo nessa arte.

          Aguentei o curso o máximo que foi possível, o que não foi muito tempo, e na mesma semana em que recebi essa carta do senhor O'Shea pedi demissão. O senhor Black implorou-me para ue fixasse, logo agora que eu estava começando a pegar o jeito da coisa, estava produzindo cada vez mais análises por dia, e me ofereceu mais dois dólares e meio por semana. Também Rachel pareceu ficar triste com a notícia. Fomos almoçar juntas pela última vez, numa outra lanchonete, onde havia um bar, e - cada uma pagando a sua conta - tomamos um coquetel antes do almoço. Quando eu estava retirando minhas coisas da mesa, ela me deu um presente, uma brochura estranha que havia acabado de ler, obra de um chinês, escrita num estilo semelhante ao de nossos alunos. O livro relatava suas experiências como trabalhador escravo em fazendas nos Estados Unidos e em canaviais em Cuba. O relato parecia verídico, mas não era "realismo", porque o autor usava uma imagística estranha, oriental.
          Cerca de dois anos depois encontrei Rachel no Times Square uma noite, quando eu ia ao teatro. Ela estava como sempre, talvez um pouco mais pesada e um pouco menos mal vestida. Perguntei-lhe se continuava trabalhando na Escola de Redação E.U.A., e como estava o senhor Black. O senhor Black, respondeu-me ela com perfeita naturalidade, estava preso, pela segunda ou terceira vez, por fazer uso indevido do correio. A Escola de Redação E.U.A. fora invadida pela polícia pouco depois de eu pedir demissão, e todas as lições, todas as cartas sinceras e confiantes de meus pobres alunos foram confiscadas. Disse ela: "Eu não lhe contei quando você estava lá, mas era por isso que a gente estava revendo todo o material. A Escola de Redação E.U.A. era um nome novo; até mais ou menos um mês antes de você entrar o nome era diferente. O Black pagou uma multa alta daquela vez, e estávamos começando tudo de novo".
          Perguntei-lhe o que ela estava fazendo agora, mas Rachel não me disse. Eu estava vestida para ir ao teatro, e ela me olhou dos pés à cabeça com desprezo - pelo que me pareceu - mas com tolerância, como se estivesse pensando: Mas que bela anarquista! Então o senhor Hearn e o senhor Margolies trocaram um aperto de mãos e se despediram para sempre.
Sobre Elizabeth Bishop e sua relação com o Brasil, onde morou muitos anos, Marta Góes - vizinha da poeta durante a infância, quando ambas moravam em Petrópolis - escreveu este monólogo.
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3 de outubro de 2010

Concomitância de tempos na narrativa de "O mistério do coelho pensante" de Clarice Lispector

Bia Albernaz
 Do coelho indigente, de natureza domesticada, Joãozinho passa a ser o coelho natural voltado para a sua necessidade. Recapturado, tem sua natureza de novo reduzida, até que o ciclo se rompe quando o coelho se torna filosófico, ao sair da sua prisão para conhecer o mundo, e ao mesmo tempo poético, tendo se libertado pela imaginação, provocando e contemplando imagens. Esta é a história de Joãozinho, o coelho pensante, que, apesar de misteriosa, não tem nada de complicada, pois como diz a sua autora, Clarice Lispector:
Todo mundo sabe tudo.
E uma ou outra vez, alguém redescobre a pólvora, e o coração bate.
A gente se atrapalha é quando quer falar,
mas todo mundo sabe tudo.
Capa e ilustrações de Leila Barbosa
           Na história do mistério do coelho, a voz narrativa sai da intimidade. Voz narrativa é um conceito literário que extrapola à tipologia dos textos: não é exclusiva de nenhum deles, nem poderia ser reduzida ao uso de uma técnica. É uma espécie de afinação entre o que se conta e o modo como se conta. Mais do que isso, é também o modo como o narrador dá corpo à história, como a torna tangível, próxima à sua sensibilidade e, por conseguinte, ao do ouvinte. Poderia ser comparada à embocadura, essencial para os intérpretes de instrumentos de sopro.
          Pois então, na história do coelho pensante, desde o primeiro momento, do impulso de conta-la até à pulsação narrativa, a voz narrativa toma vulto pelo andamento e cadência progressivamente mais intensos a medida que, com o desenrolar dos acontecimentos, a história vira um enredo. Como a voz narrativa sai da intimidade, já que foi escrita “a pedido-ordem de Paulo [filho da autora] quando ele era menor” e também como “discreta homenagem a dois coelhos que pertenceram a Pedro e Paulo”, ela sofre uma transformação, tal como o personagem que dá título ao livro, passando da necessidade à liberdade. Essa transformação na forma relaciona-se com o que Luigi Pareyson chama de formatividade, conceito que dá ênfase à importância do processo na criação da obra de arte. Ao acentuar a relação entre o artista e sua arte, esse autor ilumina o fato de que, durante o processo de realização de uma obra, o artista produz também o seu modo de produzir, seu estilo, num diálogo constante com a matéria prima. Nessa perspectiva, o artista desce do pedestal da pura inventividade e assume também a condição de padecimento, ao se deixar conduzir pela obra, atendendo os seus desígnios, a sua especificidade.
         No caso de “O mistério do coelho pensante”, fica bem clara essa presença formativa pela adoção de um estilo bastante livre e espontâneo de narrar coerente com a liberdade que pouco a pouco, e graças ao pensamento, o coelho vem a conquistar. Abrindo as portas à imaginação, a narradora recorre a uma linguagem em que a prosa alimenta-se constantemente da poesia,  para espacializar a história. Com a prosa, por outro lado, ela temporaliza a experiência, que se desdobra, complexificando-se pela concomitância do passado, presente e futuro dentro da mesma história.
          Assim, a narração propriamente dita é feita no passado:
          Um dia o nariz de Joãozinho conseguiu farejar uma coisa tão maravilhosa que ele ficou bobo.
          Mas o tempo verbal no presente aparece na história, tanto no endereçamento direto da narradora ao leitor ou ao interlocutor (já que ela conta a história para o seu filho Paulo), quanto nos momentos de digressões, considerações da narradora à margem dos acontecimentos:
          Desconfio que você não sabe bem o que quer dizer natureza de coelho.
          Natureza de coelho é o modo como o coelho é feito.
         Por fim, o tempo futuro ocorre à medida em que a história reserva um papel fundamental à narração por vir, já que a história só irá se completar no momento em que “pais e mães, tios e tias, e avós” a contarem. Pois, explica a autora, ainda na sua apresentação,
         Como a história foi escrita para uso exclusivo doméstico, deixei todas as entrelinhas para as  explicações orais. Peço desculpas a pais e mães, tios e tias, e avós, pela contribuição forçada que serão obrigados a dar.
          Além disso, no final, a história é lançada ao futuro por uma ação incerta, que depende de um desejo para ocorrer, aparecendo, no texto, expressa pelo futuro subjuntivo:
          Se você quiser adivinhar o mistério, Paulinho, experimente você mesmo franzir o nariz para ver se dá certo.
          A complexidade da temporalização nesta narrativa aumenta ainda mais quando se considera que o presente pode ser referente a um acontecimento atemporal:
          E foi aí que ele descobriu que gostar é quase tão bom como comer.
         Assim, os tempos usados nesta narração, apresentada sob a forma simples de uma conversa, expressam as suas múltiplas possibilidades enquanto experiência já que o leitor é levado a acompanhar esse movimento sinuoso de passagens no tempo sem que se dê conta, sem apresentar resistência. Ou seja: sem que a autora explique ou prepare, o pensamento do leitor incorpora a complexidade temporal do texto. Em relação a essa habilidade, a obra de Clarice Lispector é pródiga. Pela espontaneidade do seu dizer, ela inventa uma espécie de língua desinteligente. A sua maestria está em apresentar a complexidade de um modo despojado, e ainda assim denso, já que lhe interessa a linguagem obediente aos mistérios de ser, àquilo que foge às classificações redutoras, ou ao tratamento do tempo como se ele apenas se realizasse ou pudesse ser compreendido através da cronologia. Desse modo, alarga-se a realidade.
(Trecho do artigo "Poesia e filosofia em 'O mistério do coelho pensante' de Clarice Lispector)

1 de outubro de 2010

Clarisse

Luiz Felinto
           Caminhava imerso em pensamentos quando encontrei Clarisse. Encontrei não é bem o termo, vislumbrei-a. Foi o bastante. O perfil, o rosto, os olhos, a boca, o corpo, tudo me dizia Clarisse. Duvidei. Cismado, parei para observá-la. Era Clarisse, a minha, minha grande e antiga paixão. Parecia a mesma, o tempo não lhe havia sido cruel. Enquanto se afastava, meus olhos iam com ela.
           Foi há muito tempo. Aguardávamos o inicio da sessão de cinema no saguão quando nossos olhos se encontraram. Que olhos lindos, que boca sensual. O corpo nada ficava a dever às virgens do paraíso de Alá. Ofereci-lhe uma pipoca, ela, meio sem jeito, aceitou. Conversa vai, conversa vem, marcamos um encontro. Foi o início de nosso namoro. Apaixonei-me perdidamente. Ela, nem tanto.
          Morava em uma rua arborizada e tranqüila da Tijuca. Passeávamos pelas ruas das redondezas de mãos dadas, íamos até a Praça Saens Pena, a uma sessão de cinema ou tomar sorvete – éramos jovens, muito jovens. Um dia, após uma semana de namoro, passávamos por um trecho mais escuro quando a puxei e roubei-lhe um beijo, o primeiro beijo. Depois disso o namoro esquentou. Eu a abraçava, apertava com força e beijava com sofreguidão, como se quisesse devorá-la, fazer dos dois um só ser. Ela retribuía com paixão, ou, pelo menos, parecia retribuir. Como foram prazerosos os bailes, o dançar agarradinho, rodar pelo salão murmurando versos e juras ao ouvido. Ainda não haviam sido inventados os verbos “ficar” e “transar”, por isso não passamos dos carinhos ardentes. Eram outros tempos, não havia a pílula, e os namoros eram mais comportados.
         Ficamos assim por quase um ano. Depois ela foi esfriando, esfriando, até me dispensar com uma desculpa qualquer: não queria continuar comigo.
           Ela se foi, a lembrança ficou, e durante muito tempo me fez companhia. Em noites de saudade, lembrava os boleros que dançávamos bem juntinhos. Sofria e dançava sozinho, mas com ela no pensamento. Ouvia a música suave e dançava: Solamente una vez amé em la vida, solamente una vez y nada más... Hoy mi playa se viste de amargura, porque tu barca tiene que partir, a cruzar otros mares de locura, cuida que no naufrague tu vivir...   Era uma tristeza gostosa e, como toda paixão jovem, teve o seu lado bom, as descobertas, as experiências.
           Clarisse passou. Não passou a lembrança. Agora mesmo, pensando nela, os versos de uma outra música me vêm à cabeça: Oh! Insensato coração, por que me fizestes sofrer! Por que de amor para entender, é preciso amar? Só louco amou como eu amei, só louco!
             É, para amar tanto, só louco, insensato. Mas valeu, sempre valerá a pena amar Clarisse.
JMGLA

Exceção: Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar

João Cabral de Melo Neto
Por que é o mesmo o pudor
de escrever e defecar?
Não há o pudor de comer,
de beber, de incorporar,
e em geral tem pudor
quem pede do que quem dá.
Então por que quem escreve,
se escrever é afinal dar,
evita gente por perto
e procura se isolar?

Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.

(Mas no pudor do escritor
o mais curioso está
em que o pudor de fazer
é impudor de publicar:
com o feito, o pudor se faz
se exibir, se demonstrar,
mesmo nos que não fazendo
profissão de confessar,
não fazem para se expor
mas dar a ver o que há.)

Museu de Tudo: poesia, 66-74. Homenagens a Vinicius, Marques Rebelo, Manuel Bandeira, Mondrian, Rilke, Proust, ao futebol e à aspirina. Capa: Eugênio Hirsch.